28 janeiro 2017

Da escalada xenófoba à cápsula do tempo

Como Sophia de Mello Breyner, vemos ouvimos e lemos, mas custa-nos a acreditar. A profecia, afinal, está a cumprir-se, superando todos os vaticínios. Por obra de uma acção arrogante, boçal, racista e xenófoba, de loucura, talvez. De quem ignora que os “verdadeiros americanos” eram, de facto, os povos apache, sioux, cherokee e outras nações ameríndias pré-colombianas, chacinadas e forçadas a abdicar das suas língua e cultura e a acantonar-se em reservas sob a força dos modernos fundadores, eles próprios imigrantes fugidos à fome e à intolerância, na sua maioria. 

Todos os dias nos chegam notícias aterradoras dos feitos daquele cujo nome não merece ser dito [1]. Os jornais, os meios de comunicação em geral, quase esgotam os conteúdos com a descrição das atrocidades, o desenvolvimento dos debates sobre como foi possível tal eleição, a discussão, estéril, sobre a natureza, reformista ou revolucionária, do processo em curso. Pois será tempo, agora, de começar a fazer-se o registo da destruição e de se reflectir sobre as prováveis consequências a prazo do desastre iniciado oficialmente há precisamente uma semana.

A releitura da história, da breve história moderna americana, não deixa dúvidas sobre o facto de a força daquela nação se dever em grande medida à mistura e combinação, tantas vezes dolorosas, da grande diversidade de povos e culturas que a vêm constituindo. Querem negá-lo os donos do dinheiro, arrogantes e cínicos, que tão depressa exploram a mão de obra imigrada que contribui clandestinamente para os seus lucros, como se propõem erguer muros de betão, em parte já existentes. Muros ao longo dos quais se alinham e produzem há décadas, essencialmente para o mercado americano, milhares de empresas de assemblagem, as maquiladoras, de capital americano mas também agora japonês ou coreano, as quais exploram a mão de obra mexicana, barata e frequentemente ilegal e que, segundo Enrique Dávalos, pagam menos impostos que as empresas mexicanas, utilizam uma força de trabalho muito barata e possuem regulamentações ambientais que nunca são cumpridas [2]. 

Também a política americana, interna e externa, com a sua gritante ambivalência, tanto republicana como democrata, nos revela uma sucessão dramática de avanços e recuos na forma de considerar “o outro”. O estudante europeu, de preferência branco, anglo-saxónico, e protestante (WASP), viu serem-lhe concedidos, logo desde o século XVII e até aos anos 60, privilégios únicos em termos de educação, direitos de imigração e outros – era o período em que a sociedade americana selecionava e desenvolvia o seu “capital humano”, indispensável ao arranque sucessivo da industrialização, da electrónica, do aeroespacial e das tecnologias da informação. Direitos que não eram concedidos a imigrantes de outras proveniências nem especialmente aos afro-americanos residentes que, pelo contrário, eram segregados na escola, nos transportes e até na igreja, fonte de inspiração do sonho que Martin Luther King e Rosa Parks, entre outros, protagonizaram e partilharam com o mundo.

 Palcos de ambivalência, bem ilustrada em filmes e peças tão distantes no tempo como West Side Story, A Solidão dos Campos de Algodão ou A Cor Púrpura, o racismo, a misoginia e outras formas de intolerância e preconceito foram (quase) [3] feridos de morte pelo movimento libertador dos anos 60, movimento que os Estados Unidos ofereceram à chamada civilização ocidental, ao mesmo tempo que reforçavam a sua poderosa indústria de armamento iniciando, no Vietname, um ciclo de guerras e de intervenções militares com que até agora têm tentado dominar outras partes do mundo.

Do famoso melting pot, tão elogiado pela ideologia do modo (ou “modelo”) de vida americano mas tão controvertido no dia a dia da sociedade estado-unidense, resultaram sem dúvida ciclos de medo e perseguição. Mas a ele devemos – não só os Estados Unidos mas a sociedade global – marcos de referência das nossas civilizações e culturas. Sem ele, Gershwin não teria concebido Porgy and Bess, a obra de Stravinski ser-nos-ia menos acessível, Nina Simone e Miles Davis continuariam a cantar os espirituais, jazz e R&B, na clandestinidade das caves das destilarias. Também o melting pot nos permite agora, numa milha quadrada novaiorquina [4], a possibilidade de visitarmos, entre outras, as obras primas dos native american, no Met, daí seguirmos para a espiral de Frank Lloyd Wright, o Solomon Guggenheim que recebeu o nome do seu fundador, judeu americano, para descansarmos, por fim, no Central Park, cada vez mais lar improvisado dos sem abrigo e excluídos de Nova Iorque. Sim, do melting pot resultou também uma das sociedades mais desiguais que hoje conhecemos, como o ilustra Thomas Piketty: “a percentagem de rendimento apropriada pelos 10% mais ricos nos Estados Unidos, em 2012, era igual a 50,4%, a mais elevada desde o início da série, em 1917[5] e que tem vindo a agravar-se desde então.

Seja como for, por motivos mais honrosos ou menos nobres, nunca a sociedade norte-americana soube viver em autarcia. Apesar das quarentenas em Rhode Island e das preferências expressas nos acordos multilaterais de comércio internacional que agora se querem por em causa, a sociedade e economia norte americanas sempre se abriram ao mundo, normalmente tentando impor-se-lhe mas acabando, quase sistematicamente, por dele depender em grande medida. Se nem tudo fluíu tão fácil e espontaneamente como a música e a arte, o certo é que também a barreira institucional veio quebrando as resistências face ao outro, ao estrangeiro, e ao imperativo da dimensão dos mercados globais, especialmente financeiros. Fazendo jus à sabedoria popular, foram também muitos os túneis que se cavaram, entretanto, por debaixo dos arames farpados.

Tudo isto ignoram, ou fingem ignorar, sobranceiramente, os donos directos e indirectos de Wall Street e todos aqueles que acolitam “aquele cujo nome…”. Não nos iludamos, no entanto: por trás da escalada de caos e desastre, operados por um personagem para-esquizoide e seus seguidores, esconde-se, tudo o faz crer, uma estratégia de destruição massiva que pretende substituir a democracia, mesmo que ambígua, pela reintrodução dos aspectos mais negros e bem conhecidos dos nacionalismos, da xenofobia e de outras formas de intolerância que pensávamos erradicadas, levando a um auto centramento que sempre foi estranho à sociedade americana. Como se se quisesse fazer desta um gueto anacrónico de protecção aos que partilham o grande capital. Ou, melhor, uma cápsula do tempo onde jazam, cristalizados, alguns dos resultados mais nobres da nossa civilização. Felizmente, parecem começar a surgir as reacções “contra aquele cujo nome…”, mesmo no interior do seu próprio partido. Pois que vinguem e sejam eficazes ou tornar-nos-emos todos reféns encapsulados.

Como Sophia, vemos, ouvimos e lemos; mas, sobretudo, não podemos ignorar.


[1] Adaptação ligeira de “aquele cujo nome não deve ser pronunciado”, relativo à personagem, igualmente tenebrosa, de Valdemort, o vilão dos livros de Harry Potter de J.K. Rowling. Aqui, infelizmente, personagem real.
[2] Depoimento no filme Maquilapolis: cidade de fábricas, de Vicky Funari e Sérgio de la Torre (2006), apresentado no Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em 2007, cujo guião pode ser lido aqui.
[3] “Quase”, porque estamos a assistir nos dias de hoje a um recrudescimento significativo da violência racista institucionalizada, essencialmente na polícia e forças armadas americanas, a par do reforço de formas de nacionalismo que, como sabemos, ocorrem também na sociedade europeia actual, embora com contornos diferentes.
[4] A “museum mile”, no vernacular novaiorquino.
[5] Piketty, Th. (2012). O capital no século XXI

2 comentários:

  1. Não posso estar mais de acordo consigo, Margarida. Muito obrigada! Que tempos difíceis estes! Mas tem razão, acima de tudo "não podemos ignorar"

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