14 abril 2020

Quanto custa o supérfluo?

Será que precisamos de tudo com o que habitualmente vivemos?

É muito difícil fazer contas.

Sabemos que a grande maioria dos sectores da economia está parada em virtude da pandemia. E dizem-nos, quem bem o terá estudado, que paragens desta monta poderão vir a corresponder a quebras de cerca de 8% do PIB por trimestre. Sabemos também que as importações de bens duradouros, como os automóveis e outros equipamentos, diminuíram drasticamente. Que a construção civil – que não parou por completo – e sobretudo o turismo, a restauração e o comércio sofrem perdas dramáticas. Tudo isso é quantificável e se contabiliza.

Talvez mais importante ainda, a crise está a reforçar as desigualdades, a fazer aumentar o risco de pobreza, a agravar as condições de vida mesmo de quem tem, ou tinha, trabalho, os especialistas nestes domínios têm sido bem claros. Os precários, os contratados a termo certo, os trabalhadores temporários, os que fazem involuntariamente horário parcial são os primeiros a sofrer. Em consequência, os seus consumos e de suas famílias reduzem-se ao mínimo, muitos passam mesmo mal e com carências de vários tipos. De entre eles, alguns sentir-se-ão uma vez mais atraídos pelo recurso ao crédito, sempre revestido de roupagens tão tentadoras quanto enganosas. Também estas quebras se poderão calcular, com um mínimo de rigor. É todo um agravamento nas condições de vida destas populações, os últimos posts deste blogue bem o têm caracterizado.
Muitos, ainda, sofrem infelizmente os efeitos directos da pandemia. Estão doentes, com maior ou menor gravidade, viram familiares seus a não conseguirem resistir, em muitos casos estão internados ou em quarentena. Os seus consumos diminuíram também, naturalmente. Não terão, entretanto, tido menos despesas com saúde nem com equipamentos de protecção contra o vírus, nem com os consumos relativamente fixos de energia, comunicações, manutenção em geral.

E todos os outros? Os que mantêm os seus vencimentos, as suas pensões de reforma, outros eventuais rendimentos, como os de propriedade? E que se encontram igualmente confinados…

Diz-nos o senso comum que todos os consumos correntes dos que têm a sorte de não terem sido directamente afectados se encontram igualmente em queda acentuada: não se fazem, ou reduzem-se ao mínimo, as despesas com restauração, as saídas de turismo e lazer são agora inexistentes, as visitas aos centros comerciais foram adiadas sine die, recupera-se e reutiliza-se muito mais, por vezes como nunca se tinha pensado ser possível. E, no entanto, todas estas pessoas sobrevivem, não parece que o seu estado de saúde física se tenha agravado[1] e, mesmo mentalmente, há quem tenha aprendido a mitigar o confinamento através de consumos culturais por streaming, visitas virtuais a museus e galerias de arte, releitura de livros ou sua leitura em formato e-book.

Não é o mesmo, bem o sabemos, os consumos culturais e intelectuais vivem muito também da frequência dos espaços onde habitualmente têm lugar e do contacto directo com os criadores. Por outro lado, a vida social e afectiva sofre como nunca a perda do outro, sobretudo em famílias com várias gerações distantes entre si e, muito especialmente, para as pessoas que vivem isoladas. A mobilidade revelou-se-nos também, com efeito, como um bem de valor nunca suspeitado.

Todos estes constituem bens essenciais numa sociedade moderna.

Mas todos os outros consumos, aqueles que deixámos de fazer, ou passámos a fazer em casa, a produzir, a reutilizar e arranjar por nós próprios, a substituir por alternativas mais simples e directas, aqueles de que aprendemos a prescindir? Quantos desses consumos serão, efectivamente, indispensáveis à vida numa sociedade moderna?
É muito difícil fazer contas, volto a repetir. Mas seria um desafio interessante: o de calcular quanto custa o supérfluo. Isto é, o de fazer contas àquilo que gastamos e de que, verdadeiramente, não necessitamos para viver condignamente. Seria uma atitude ecologicamente coerente. Além disso, se os mecanismos de redistribuição funcionassem adequadamente – o que é toda uma outra questão… – seria um primeiro passo importante no caminho para uma sociedade mais justa e inclusiva.





[1] Pese embora o facto de, como sabemos, muitas consultas e actos médicos de rotina estarem a ser adiados por receio de contágio.

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