Acerca de esbulho ou do ato de esbulhar dizem os dicionários:
- “Aurélio” - Privar alguém de alguma coisa a que tinha direito;
- “José
Pedro Machado” – Desapossar de; desapoderar, despojar, desapropriar.
O significado dado por ambos os autores, é largamente coincidente, mas
de algum modo se pode dizer que o primeiro torna mais explícito o conteúdo do segundo,
na medida em que a coisa de que se foi desapossado era algo a que se tinha
direito.
Perguntar-se-á: porque é que se vai agora buscar o termo esbulho? Por uma simples razão, não poderão
deixar de ser classificados como tal algumas das medidas de política que em
Portugal, e não só, têm vindo a ser adotadas pelo Governo com o pretexto do saneamento das
finanças públicas, mas que não se traduzem em outra coisa que não seja a
transferência de rendimentos dos que menos têm para os que mais têm. Adiante vamos
ver porquê.
Neste post pretendo comentar a
anunciada criação duma taxa sobre os produtos alimentares, comercializados nas
grandes superfícies, a pretexto de financiar iniciativas que visam garantir a
segurança alimentar.
Começo por justificar a numeração dos episódios. Antes deste muitos outros
episódios tiveram lugar (salários, subsídios de desemprego, despesas de saúde e
de educação, pensões de reforma, subsídios de 13º e 14º mês, etc.) que aqui não
foram expressamente comentados. Como não vou fazer uma enumeração desses
episódios, optei por supor que o conjunto da sua soma poderia ser tomado como
sendo igual a “n”, sendo o da taxa sobre os produtos alimentares, o primeiro
que se acrescenta aos “n” anteriores.
Merece alguma explicação adicional o que atrás se disse acerca da
qualificação de “transferência de rendimentos dos que menos têm para os que
mais têm”. Desde o fim da 2ª Guerra Mundial que, pausadamente, mas de forma
persistente, se foi construindo o que veio a ficar designado como “Estado
Social”. Essa construção teve um objetivo claro: tornar acessível a toda a
população o benefício de bens (água, luz) e serviços (saúde, educação, ações
culturais), tomados como aquisições do progresso humano e a que não poderia
aceder parte da população, com os rendimentos que auferia, mas que por opção
política se considerou que deles deveria beneficiar.
Contudo, o fornecimento desses bens e serviços implicava o respetivo
financiamento feito pelas diversas administrações públicas, cuja fonte não
poderia ser outra que não as receitas do Estado e, nomeadamente, os impostos.
Naturalmente que a carga fiscal existente, através do sistema de impostos
progressivos, tendia a sobrecarregar mais os que tinham rendimentos mais
elevados, no que a esse financiamento diz respeito. Esta era, e é, uma forma indireta de obter uma distribuição dos
rendimentos mais equilibrada.
Entretanto, os abundantes capitais existentes no mercado, em busca de
aplicações rentáveis, descobriram que, graças às designadas “criatividade” e “inovações”
no sistema financeiro, poderiam aí encontrar aplicações com rentabilidades mais
elevadas do que nas aplicações tradicionais: economia real e mercado das
inovações. Foi aí que, essencialmente, as aplicações se concentraram. A ousadia
e o risco assumidos por essas aplicações cresceram de modo exponencial. O
resultado é conhecido, nomeadamente, a partir da explosão verificada em
2008.
Se mais nada tivesse acontecido, os que realizaram aquelas aplicações
arriscadas teriam sido sujeitos a grandes perdas. Não foi isso o que aconteceu.
Este povo da engenharia financeira dorme sempre com um olho aberto e outro
fechado e, rapidamente, descobriu que poderia fazer-se ressarcir das perdas
ocorridas especulando sobre a dívida dos países que tinham, no mundo da
globalização, uma posição política mais frágil. Tal qual animais selvagens,
começaram o repasto por países como a Irlanda, a Grécia e Portugal e nisso não
se têm saído nada mal. Chegados ao esqueleto vão em busca de outras presas, a
Espanha, a Itália, talvez a França, e assim sucessivamente.
Todas estas operações a que temos assistido não são outra coisa que a
recomposição dos capitais que tinham sofrido perdas com as anteriores aventuras
financeiras. Estamos, de facto, perante uma transferência de rendimentos (ainda
que indireta) dos que menos têm para os que mais têm, utilizando para tal a
destruição do Estado Social. O que demorou 50 ou 60 anos a construir pode
desaparecer em muito menos de uma década!
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