A
pandemia de COVID-19 e os seus efeitos voltaram a dar ênfase aos estudos e
análises sobre as desigualdades entre homens e mulheres. Trata-se de
contributos com origem científica diversificada, tal a variedade de domínios
que se preocupam com este tema, desde as Ciências da Saúde, à Psicologia e à Filosofia,
à Sociologia e à Economia, por exemplo. Mas também instituições de referência
internacional, como a ONU, a OCDE e algumas comunitárias, têm vindo a
contribuir com trabalhos recentes sobre o tema. Pese embora esta variedade, a principal
conclusão que retiram é comum: os efeitos da pandemia estão a afectar
especialmente as mulheres e a aprofundar a desigualdade de género.
Os
estudos que se centram mais nas áreas da Saúde, destacam os efeitos
relacionados com a sobrecarga de actividades que pesa agora ainda mais sobre as
mulheres: a “dupla” ou “tripla” tarefa, já tão estudada[1],
é agora reforçada pelo facto de às actividades correntes acrescerem entretanto,
com os confinamentos e o trabalho e escola à distância, as funções de
explicadora dos filhos em casa, gestora do espaço doméstico, tantas vezes
exíguo, que tem que ser agora partilhado simultaneamente entre vários
utilizadores e… o seu próprio trabalho a partir de casa, enquanto profissional.
Sobre este aspecto, e especialmente sobre a necessidade de se pensar numa “economia
do cuidado” na qual o Estado deverá ter uma responsabilidade fundamental, Ana
Sofia Fernandes, Presidente
da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres publicou um
interessante depoimento no Público de 25 de Abril último[2].
Aqui chama a atenção para o facto de não poder continuar a admitir-se a
invisibilidade daquele trabalho que, sendo socialmente indispensável, tem vindo
a recair predominantemente sobre as mulheres como as estatísticas mostram.
E,
já agora, uma vez que está em casa, torna-se mais “natural” a dupla carga
anterior que já lhe cometia, na maior parte das vezes: o essencial do cozinhar,
limpar, cuidar dos dependentes, e tantas outras. Este processo de “naturalização”
do que já era excessivo e agora se agrava substancialmente, começa a ser
objecto de análise por parte de psicólogos e outros profissionais das Ciências
Humanas. Os efeitos analisados em termos de aumento do stress, da já chamada “fadiga do zoom”, de problemas de
hipertensão, insónias e tantos outros, têm vindo a dar lugar a estudos
importantes, como por exemplo, o de Tracy Bauer, desenvolvido para a Forbes
e dado a conhecer em 21 de Abril último.
Também
a violência doméstica, o tráfico de mulheres e outros crimes de que são
vítimas, têm vindo a aumentar significativamente: separadas das famílias e
amigos, quebradas com o isolamento as redes de possível apoio, aumentado
exponencialmente o tempo de contacto, em casa, com o potencial agressor e, em
muitos países mais pobres, retiradas da escola para apoiar nos cuidados com a
pandemia, as mulheres e raparigas estão muito mais expostas àquelas diferentes
formas de violência, como reporta Tom Tracey na revista Crux
de 18 de Abril.
Uma
reflexão especial há a fazer, no entanto, no que respeita aos efeitos da
pandemia sobre a situação das mulheres perante o trabalho e o emprego e suas
consequências não só a curto mas também a médio prazos. A primeira constatação
geral é a de que, quando é necessário descontinuar ou interromper o emprego
para prestar apoio e cuidados à família, as mulheres o estão a fazer em muito
maior percentagem do que os homens. E isto sucede um pouco por toda a parte,
especialmente nos países menos desenvolvidos mas não poupando os mais ricos,
como é o caso do Canadá.
Está mesmo a tender a generalizar-se, em muitos países, um efeito de diminuição
da taxa de actividade feminina, em consequência da COVID-19, em nítido recuo face
à evolução registada em praticamente todo o mundo, nas últimas décadas.
Há
que saudar a iniciativa desenvolvida entre nós pelo Gabinete de Estratégia e
Planeamento do Ministério do Trabalho Solidariedade e Segurança Social que,
face à dureza dos efeitos da pandemia sobre o trabalho e o emprego, encetou,
ainda em Abril de 2000, um processo de construção sistemática de Indicadores
COVID-19, a que pode aceder-se através do link
http://www.gep.mtsss.gov.pt/indicadores-covid-19-mtsss.
Embora nem todos estes indicadores se encontrem ainda desagregados por sexo,
alguns já o estão e falam por si: 84,7% das Baixas por Isolamento de Dependente,
81,2% do Número de Dias tirados ao abrigo do Apoio Excepcional à Família e mais
de 54% dos beneficiários de medidas Apoio Extraordinário à Redução de
Actividade – Trabalhadores Independentes, sempre em resultado da pandemia,
foram mulheres (dados relativos a 27 de Janeiro de 2021). E se a reinserção no
mercado de trabalho é quase sempre mais difícil e demorada para as mulheres,
bem se percebe como estes valores apontam para dificuldades que se lhes
colocarão a médio e longo prazos.
Aos
resultados destes indicadores há que acrescentar os que decorrem da análise do
mercado de trabalho por sectores de actividade. Assim, e por um lado, o
trabalho e emprego das mulheres predomina em sectores especialmente afectados
pela pandemia, como a restauração e hotelaria e o turismo, de onde um maior
risco de layoff e de desemprego. Por
outro, também os sectores da educação e da saúde têm elevadas taxas de
feminização, o que significa que o esforço com o ensino à distância, por um
lado, e o risco de doença, por outro, afectam também sobretudo o sexo feminino.
Mas
também a igualdade salarial entre mulheres e homens, em Portugal, está ainda
longe de se verificar, em muitos sectores e mesmo para níveis elevados de
escolaridade. Quando, no início dos anos 80, Manuela Silva publicou o trabalho
pioneiro sobre as desigualdades de género no mercado de trabalho em Portugal[3],
as remunerações médias mensais de base das mulheres pouco ultrapassavam, em
agregado, os 75% das dos homens e os ganhos médios mensais mal chegavam a 70%
dos daqueles. Passaram 40 anos desde então, e muita água correu por debaixo das
pontes, com melhorias significativas na situação das mulheres, face aos homens,
naquele domínio. Mas ter-se-á atingido a igualdade? Longe disso: recalculando
aqueles indicadores de diferencial de remuneração por sexos para 2018, último
ano disponível para Portugal, obtemos 85,5% e 82,0%, respectivamente… o que
corresponde a um dos cinco maiores diferenciais da U.E. no mesmo período.
Ou
seja, a pandemia está a contribuir para agravar uma desigualdade entre mulheres
e homens que já era significativa à partida. Exigem-se, portanto, medidas enérgicas
e efectivas de promoção da igualdade de género também neste domínio, sob pena
de se perpetuar esta forma de entorse persistente à democracia em Portugal.
[1] Sobre este aspecto, Heloísa Perista tem vindo a desenvolver inúmeros trabalhos relativos à realidade portuguesa, trabalhos que serviram de base ao Inquérito Nacional aos Usos do Tempo de Homens e Mulheres, da responsabilidade do INE e que aquela cientista coordenou com uma equipa do CESIS. Ver
[2] Ana Sofia Fernandes, “A Verdadeira Mão Invisível: as mulheres e a necessidade de uma economia do cuidado”, 25 de Abril de 2021, Público.
[3] SILVA, Manuela, (1983). O Emprego das Mulheres em Portugal – a mão invisível na discriminação sexual do emprego, Porto: Edições Afrontamento.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Os comentários estão sujeitos a moderação.