Com
o título acima “Passar de bonitas palavras aos actos” ocorre-me logo a bonita
expressão “Responsabilidade Social das Empresas” (RSE) e o exemplo de empresas
em que a RSE é filantrópica mas como caridade fora de casa, porque em casa as
políticas salarial e de vínculo laboral são contraditórias com a RSE, pois ou
os trabalhadores continuam pobres com as respectivas famílias ou muitas vezes
também à insegurança do “ganha-pão” junta-se a do emprego. E aqui aplica-se
então a expressão “de boas intenções está o inferno cheio” e não apenas por
falhas de omissão. As boas intenções, porém, podem inspirar o impulso para
políticas e projectos de justiça, desenvolvimento e dignidade humana, não só
“em casa” como sobre o que “a casa chega”.
Vem
isto a propósito de uma resolução do Conselho Europeu de 1 de Dezembro de 2020
em que se diz: “Pela primeira vez, o Conselho solicita à Comissão que, até
2021, lance um plano de acção da EU centrado na configuração sustentável das cadeias de abastecimento (destaque
meu) mundiais e na promoção dos direitos humanos, das normas em matéria de
dever de diligência social e ambiental e da transparência. Tal implica que a
Comissão apresente uma proposta de quadro jurídico da EU no domínio da
governação sustentável das empresas que imponha obrigações em matéria de dever
de diligência às empresas dos vários sectores ao longo das cadeias de
abastecimento mundiais”.
Deve
dizer-se que esta “boa intenção” insere-se numa tradição da ONU e,
nomeadamente, da OIT sobre a promoção do Trabalho Digno. Assim, o Relatório da
Comissão Mundial sobre a Dimensão Social da Globalização, intitulado “Por una
Globalizacion Justa: crear oportunidades para todos” (2004) tem uma secção
sobre “Promover o trabalho digno nos sistemas de produção globais” em que
também chama a atenção para a logística e cadeias de distribuição. Em 2007
houve em Lisboa o Forum sobre Trabalho Digno para uma Globalização Justa. O
Conselho das Nações Unidas sobre Direitos Humanos aprovou em 2011 Princípios
Orientadores sobre Negócios e Direitos Humanos (Guiding Principles on Business and Human Rights) em que se inclui o
“dever de avaliação/vigilância” (due
diligence) sobre respeito dos direitos humanos no conjunto das suas
operações, seguindo-se em 2017 a Declaração Tripartida da OIT de Princípios
respeitantes a Empresas Multinacionais e Política Social, estabelecendo padrões
sobre a due diligence. A OCDE
elaborou um documento de conteúdo semelhante, apoiado por 44 governos.
Não
obstante, várias críticas sobre estas iniciativas incidem sobre a fraqueza de
serem sobretudo de carácter voluntário e não terem força de obrigação legal com
as inerentes penalizações de incumprimento.
A
EU não tem, evidentemente, estado parada, adoptando legislação com força de
obrigação e outra de estímulo a acção voluntária, no que respeita a direitos
humanos e violações ambientais nos sectores tradicionalmente mais afectados
negativamente, tais como indústrias extractivas, madeira, indústrias de
vestuário e couro (neste parágrafo, segui Towards
a mandatory EU system of due diligence for supply chains, de Ionel Zamfir,
European Parliamentary Research Service, 2020).
Ora,
o governo alemão não esperou pela tal “proposta de quadro jurídico da EU no
domínio da governação sustentável das empresas…” e, em 3 de Março passado, o
ministro alemão do trabalho (do SPD) conseguiu convencer parceiros da coligação
(da CDU) para o governo aprovar um projecto de lei cujo título se pode traduzir
como “Lei sobre o dever de atenção cuidadosa das empresas sobre as cadeias de
fornecimento”, sendo este dever de vigilância e correcção aplicável à defesa
dos direitos humanos e do ambiente e saúde nas cadeias de fornecimento desde as
matérias primas até ao produto final no cliente. Mas, por enquanto, é apenas um
projecto de lei que irá a votação no parlamento antes do verão e que se
aplicará apenas a grandes empresas: desde 2023 às que têm um efectivo acima de
3000 trabalhadores (cerca de 600
empresas) e em 2024 aplica-se também às de efectivo a partir de 1000
trabalhadores (umas 2900 empresas). Será certamente ainda alvo de muita
discussão. Mas na chamada sociedade civil da Alemanha, incluindo ONG’s e
académicos, já há alguns anos que é visível algum movimento pressionando para
medidas a que a decisão do governo alemão, atrás referida, corresponde. Por
exemplo, numa manifestação cartazes com a palavra EXPLORAÇÃO, ou um estudo
encomendado pelo Ministério do Trabalho em que o título, nada tímido, é
“Escravatura Moderna: desafios e soluções para empresas alemãs”.
Parece-me
que em termos de opinião pública em Portugal o tema é praticamente invisível.
Que ecos houve da resolução do Conselho Europeu de Dezembro de 2020? Espera-se
pelo tal “quadro jurídico” da UE? Que consequências neste domínio terá a Agenda de Promoção do Trabalho Digno
constante do Plano de Recuperação e Resiliência?
Quanto
à vigilância sobre as cadeias de fornecimento estamos longe da vivacidade da sociedade
civil alemã, e a estrutura sectorial e dimensional empresarial portuguesa não
tem a dinâmica de factor global ou internacional que têm as empresas na
economia alemã. Não me parece, assim, haver actualmente no nosso país condições
para que seja pertinente uma iniciativa governamental parecida com a do governo
alemão.
Mas,
entretanto, talvez se pudesse fazer uma análise sobre um sector industrial que
nos documentos da ONU/OIT e nos da OCDE merece atenção: o da produção de
vestuário e o têxtil. Haveria que analisar o sector das confecções: por
exemplo, estando muitas das empresas portuguesas desse sector dependentes de
marcas internacionais, estas provavelmente controlarão elas mesmas o
abastecimento de matéria prima têxtil e, portanto, as empresas portuguesas
subcontratadas pouco poderão intervir em vigilância e avaliação de riscos (em
direitos humanos e ambiente) sobre a origem e o circuito até elas. Ou esta
minha observação já não se justifica face à inovação, modernização e autonomia
do sector em Portugal?
Já
quanto às cadeias de abastecimento e distribuição alimentar, a dominância
actual é de grandes empresas, uma nacional e as outras multinacionais. No
abastecimento alimentar, por exemplo, poderia obrigar-se as empresas a vigilância
activa sobre as condições de trabalho e efeitos sobre o ambiente, nomeadamente
no que se refere à produção em estufas no Alentejo: em que medida os
trabalhadores que lá trabalham, na maioria imigrantes, têm condições de
trabalho compatíveis com o Trabalho Digno? E a produção de olival intensiva, como
se verifica principalmente na zona de Alqueva, não estará a prejudicar o
ambiente quer em termos de poluição do ar quer em termos de esgotamento de
solos? Aqui, até parece estar a repetir-se no Alentejo o que aconteceu com a
“campanha do trigo” de Salazar.
Que
entidades devem intervir? A Autoridade para as Condições de Trabalho, sem
dúvida no caso das estufas. Mas não deverá também intervir o Ministério do
Ambiente? E o da Agricultura? Ou ambos?
Mas
também se exige que a chamada sociedade civil, principalmente os consumidores,
seja vigilante e interveniente. Algumas iniciativas têm ocorrido, mas sem
grande visibilidade. A indiferença parece dominar e a maioria dos consumidores
quer lá saber das mais de 150 milhões de crianças a trabalhar ou dos 25 milhões
de pessoas em trabalho forçado. É tudo lá longe, mesmo o trabalho nas estufas
no Alentejo.
Muito bom, este artigo, muito mais do que um banal post!
ResponderEliminarO tema é da maior actualidade e o Cláudio Teixeira compulsou fontes diversificadas, as mais adequadas e que nos permitem fazer a sequência dos antecedentes deste projecto de lei que a Alemanha se propõe fazer adoptar.
Referindo-se ao caso português, escolhe sectores da maior pertinência: o das confecções, que é também altamente feminizado e um dos que, sem sair de Portugal, já revela a grande injustiça de o ganho médio mensal das mulheres ser cerca de 75% inferior ao dos homens. Mas voltando às cadeias internacionais, o segundo exemplo, o dos sectores de trabalho agrícola intensivo no Alentejo, essencialmente as estufas e o olival, mostra como o nosso País não escapa também por aqui a esta questão, dadas as condições em que vive e trabalha a mão-de-obra imigrante que essas actividades utilizam.