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23 abril 2021

Passar de bonitas palavras aos actos

  

Com o título acima “Passar de bonitas palavras aos actos” ocorre-me logo a bonita expressão “Responsabilidade Social das Empresas” (RSE) e o exemplo de empresas em que a RSE é filantrópica mas como caridade fora de casa, porque em casa as políticas salarial e de vínculo laboral são contraditórias com a RSE, pois ou os trabalhadores continuam pobres com as respectivas famílias ou muitas vezes também à insegurança do “ganha-pão” junta-se a do emprego. E aqui aplica-se então a expressão “de boas intenções está o inferno cheio” e não apenas por falhas de omissão. As boas intenções, porém, podem inspirar o impulso para políticas e projectos de justiça, desenvolvimento e dignidade humana, não só “em casa” como sobre o que “a casa chega”.

Vem isto a propósito de uma resolução do Conselho Europeu de 1 de Dezembro de 2020 em que se diz: “Pela primeira vez, o Conselho solicita à Comissão que, até 2021, lance um plano de acção da EU centrado na configuração sustentável das cadeias de abastecimento (destaque meu) mundiais e na promoção dos direitos humanos, das normas em matéria de dever de diligência social e ambiental e da transparência. Tal implica que a Comissão apresente uma proposta de quadro jurídico da EU no domínio da governação sustentável das empresas que imponha obrigações em matéria de dever de diligência às empresas dos vários sectores ao longo das cadeias de abastecimento mundiais”.

Deve dizer-se que esta “boa intenção” insere-se numa tradição da ONU e, nomeadamente, da OIT sobre a promoção do Trabalho Digno. Assim, o Relatório da Comissão Mundial sobre a Dimensão Social da Globalização, intitulado “Por una Globalizacion Justa: crear oportunidades para todos” (2004) tem uma secção sobre “Promover o trabalho digno nos sistemas de produção globais” em que também chama a atenção para a logística e cadeias de distribuição. Em 2007 houve em Lisboa o Forum sobre Trabalho Digno para uma Globalização Justa. O Conselho das Nações Unidas sobre Direitos Humanos aprovou em 2011 Princípios Orientadores sobre Negócios e Direitos Humanos (Guiding Principles on Business and Human Rights) em que se inclui o “dever de avaliação/vigilância” (due diligence) sobre respeito dos direitos humanos no conjunto das suas operações, seguindo-se em 2017 a Declaração Tripartida da OIT de Princípios respeitantes a Empresas Multinacionais e Política Social, estabelecendo padrões sobre a due diligence. A OCDE elaborou um documento de conteúdo semelhante, apoiado por 44 governos.

Não obstante, várias críticas sobre estas iniciativas incidem sobre a fraqueza de serem sobretudo de carácter voluntário e não terem força de obrigação legal com as inerentes penalizações de incumprimento.

A EU não tem, evidentemente, estado parada, adoptando legislação com força de obrigação e outra de estímulo a acção voluntária, no que respeita a direitos humanos e violações ambientais nos sectores tradicionalmente mais afectados negativamente, tais como indústrias extractivas, madeira, indústrias de vestuário e couro (neste parágrafo, segui Towards a mandatory EU system of due diligence for supply chains, de Ionel Zamfir, European Parliamentary Research Service, 2020).

Ora, o governo alemão não esperou pela tal “proposta de quadro jurídico da EU no domínio da governação sustentável das empresas…” e, em 3 de Março passado, o ministro alemão do trabalho (do SPD) conseguiu convencer parceiros da coligação (da CDU) para o governo aprovar um projecto de lei cujo título se pode traduzir como “Lei sobre o dever de atenção cuidadosa das empresas sobre as cadeias de fornecimento”, sendo este dever de vigilância e correcção aplicável à defesa dos direitos humanos e do ambiente e saúde nas cadeias de fornecimento desde as matérias primas até ao produto final no cliente. Mas, por enquanto, é apenas um projecto de lei que irá a votação no parlamento antes do verão e que se aplicará apenas a grandes empresas: desde 2023 às que têm um efectivo acima de 3000  trabalhadores (cerca de 600 empresas) e em 2024 aplica-se também às de efectivo a partir de 1000 trabalhadores (umas 2900 empresas). Será certamente ainda alvo de muita discussão. Mas na chamada sociedade civil da Alemanha, incluindo ONG’s e académicos, já há alguns anos que é visível algum movimento pressionando para medidas a que a decisão do governo alemão, atrás referida, corresponde. Por exemplo, numa manifestação cartazes com a palavra EXPLORAÇÃO, ou um estudo encomendado pelo Ministério do Trabalho em que o título, nada tímido, é “Escravatura Moderna: desafios e soluções para empresas alemãs”.

Parece-me que em termos de opinião pública em Portugal o tema é praticamente invisível. Que ecos houve da resolução do Conselho Europeu de Dezembro de 2020? Espera-se pelo tal “quadro jurídico” da UE? Que consequências neste domínio terá a Agenda de Promoção do Trabalho Digno constante do Plano de Recuperação e Resiliência?

Quanto à vigilância sobre as cadeias de fornecimento estamos longe da vivacidade da sociedade civil alemã, e a estrutura sectorial e dimensional empresarial portuguesa não tem a dinâmica de factor global ou internacional que têm as empresas na economia alemã. Não me parece, assim, haver actualmente no nosso país condições para que seja pertinente uma iniciativa governamental parecida com a do governo alemão.

Mas, entretanto, talvez se pudesse fazer uma análise sobre um sector industrial que nos documentos da ONU/OIT e nos da OCDE merece atenção: o da produção de vestuário e o têxtil. Haveria que analisar o sector das confecções: por exemplo, estando muitas das empresas portuguesas desse sector dependentes de marcas internacionais, estas provavelmente controlarão elas mesmas o abastecimento de matéria prima têxtil e, portanto, as empresas portuguesas subcontratadas pouco poderão intervir em vigilância e avaliação de riscos (em direitos humanos e ambiente) sobre a origem e o circuito até elas. Ou esta minha observação já não se justifica face à inovação, modernização e autonomia do sector em Portugal?

Já quanto às cadeias de abastecimento e distribuição alimentar, a dominância actual é de grandes empresas, uma nacional e as outras multinacionais. No abastecimento alimentar, por exemplo, poderia obrigar-se as empresas a vigilância activa sobre as condições de trabalho e efeitos sobre o ambiente, nomeadamente no que se refere à produção em estufas no Alentejo: em que medida os trabalhadores que lá trabalham, na maioria imigrantes, têm condições de trabalho compatíveis com o Trabalho Digno? E a produção de olival intensiva, como se verifica principalmente na zona de Alqueva, não estará a prejudicar o ambiente quer em termos de poluição do ar quer em termos de esgotamento de solos? Aqui, até parece estar a repetir-se no Alentejo o que aconteceu com a “campanha do trigo” de Salazar.

Que entidades devem intervir? A Autoridade para as Condições de Trabalho, sem dúvida no caso das estufas. Mas não deverá também intervir o Ministério do Ambiente? E o da Agricultura? Ou ambos?

Mas também se exige que a chamada sociedade civil, principalmente os consumidores, seja vigilante e interveniente. Algumas iniciativas têm ocorrido, mas sem grande visibilidade. A indiferença parece dominar e a maioria dos consumidores quer lá saber das mais de 150 milhões de crianças a trabalhar ou dos 25 milhões de pessoas em trabalho forçado. É tudo lá longe, mesmo o trabalho nas estufas no Alentejo.

 

1 comentário:

  1. Muito bom, este artigo, muito mais do que um banal post!
    O tema é da maior actualidade e o Cláudio Teixeira compulsou fontes diversificadas, as mais adequadas e que nos permitem fazer a sequência dos antecedentes deste projecto de lei que a Alemanha se propõe fazer adoptar.
    Referindo-se ao caso português, escolhe sectores da maior pertinência: o das confecções, que é também altamente feminizado e um dos que, sem sair de Portugal, já revela a grande injustiça de o ganho médio mensal das mulheres ser cerca de 75% inferior ao dos homens. Mas voltando às cadeias internacionais, o segundo exemplo, o dos sectores de trabalho agrícola intensivo no Alentejo, essencialmente as estufas e o olival, mostra como o nosso País não escapa também por aqui a esta questão, dadas as condições em que vive e trabalha a mão-de-obra imigrante que essas actividades utilizam.

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