Como Sophia de Mello
Breyner, vemos ouvimos e lemos, mas
custa-nos a acreditar. A profecia, afinal, está a cumprir-se, superando todos
os vaticínios. Por obra de uma acção arrogante, boçal, racista e xenófoba, de
loucura, talvez. De quem ignora que os “verdadeiros americanos” eram, de facto,
os povos apache, sioux, cherokee e outras nações ameríndias pré-colombianas, chacinadas
e forçadas a abdicar das suas língua e cultura e a acantonar-se em reservas sob
a força dos modernos fundadores, eles próprios imigrantes fugidos à fome e à
intolerância, na sua maioria.
Todos os dias nos chegam
notícias aterradoras dos feitos daquele cujo nome não merece ser dito [1]. Os jornais, os meios de
comunicação em geral, quase esgotam os conteúdos com a descrição das
atrocidades, o desenvolvimento dos debates sobre como foi possível tal eleição,
a discussão, estéril, sobre a natureza, reformista ou revolucionária, do
processo em curso. Pois será tempo, agora, de começar a fazer-se o registo da
destruição e de se reflectir sobre as prováveis consequências a prazo do
desastre iniciado oficialmente há precisamente uma semana.
A
releitura da história, da breve história moderna americana, não deixa dúvidas
sobre o facto de a força daquela nação se dever em grande medida à mistura e
combinação, tantas vezes dolorosas, da grande diversidade de povos e culturas que
a vêm constituindo. Querem negá-lo os donos do dinheiro, arrogantes e cínicos,
que tão depressa exploram a mão de obra imigrada que contribui clandestinamente
para os seus lucros, como se propõem erguer muros de betão, em parte já
existentes. Muros ao longo dos quais se alinham e produzem há décadas,
essencialmente para o mercado americano, milhares de empresas de assemblagem,
as maquiladoras, de capital americano mas também agora japonês ou coreano, as
quais exploram a mão de obra mexicana, barata e frequentemente ilegal e que,
segundo Enrique Dávalos, pagam menos impostos que as empresas
mexicanas, utilizam uma força de trabalho muito barata e possuem
regulamentações ambientais que nunca são cumpridas [2].
Também a política americana, interna e externa, com a sua gritante
ambivalência, tanto republicana como democrata, nos revela uma sucessão
dramática de avanços e recuos na forma de considerar “o outro”. O estudante
europeu, de preferência branco, anglo-saxónico, e protestante (WASP), viu
serem-lhe concedidos, logo desde o século XVII e até aos anos 60, privilégios
únicos em termos de educação, direitos de imigração e outros – era o período em
que a sociedade americana selecionava e desenvolvia o seu “capital humano”,
indispensável ao arranque sucessivo da industrialização, da electrónica, do
aeroespacial e das tecnologias da informação. Direitos que não eram concedidos
a imigrantes de outras proveniências nem especialmente aos afro-americanos
residentes que, pelo contrário, eram segregados na escola, nos transportes e
até na igreja, fonte de inspiração do sonho que Martin Luther King e Rosa
Parks, entre outros, protagonizaram e partilharam com o mundo.
Palcos de
ambivalência, bem ilustrada em filmes e peças tão distantes no tempo como West Side Story, A Solidão dos Campos de
Algodão ou A Cor Púrpura, o
racismo, a misoginia e outras formas de intolerância e preconceito foram
(quase) [3] feridos de morte pelo
movimento libertador dos anos 60, movimento que os Estados Unidos ofereceram à
chamada civilização ocidental, ao mesmo tempo que reforçavam a sua poderosa
indústria de armamento iniciando, no Vietname, um ciclo de guerras e de
intervenções militares com que até agora têm tentado dominar outras partes do
mundo.
Do famoso melting pot, tão elogiado pela ideologia
do modo (ou “modelo”) de vida americano mas tão controvertido no dia a dia da
sociedade estado-unidense, resultaram sem dúvida ciclos de medo e perseguição.
Mas a ele devemos – não só os Estados Unidos mas a sociedade global – marcos de
referência das nossas civilizações e culturas. Sem ele, Gershwin não teria
concebido Porgy and Bess, a obra de Stravinski ser-nos-ia menos acessível, Nina
Simone e Miles Davis continuariam a cantar os espirituais, jazz e R&B, na
clandestinidade das caves das destilarias. Também o melting pot nos permite agora, numa milha quadrada novaiorquina [4], a possibilidade de
visitarmos, entre outras, as obras primas dos native american, no Met, daí seguirmos para a espiral de Frank
Lloyd Wright, o Solomon Guggenheim que recebeu o nome do seu fundador, judeu
americano, para descansarmos, por fim, no Central Park, cada vez mais lar
improvisado dos sem abrigo e excluídos de Nova Iorque. Sim, do melting pot resultou também uma das
sociedades mais desiguais que hoje conhecemos, como o ilustra Thomas Piketty: “a percentagem de rendimento apropriada pelos
10% mais ricos nos Estados Unidos, em 2012, era igual a 50,4%, a mais elevada
desde o início da série, em 1917”[5] e que tem vindo a
agravar-se desde então.
Seja como for, por motivos
mais honrosos ou menos nobres, nunca a sociedade norte-americana soube viver em
autarcia. Apesar das quarentenas em Rhode Island e das preferências expressas
nos acordos multilaterais de comércio internacional que agora se querem por em
causa, a sociedade e economia norte americanas sempre se abriram ao mundo,
normalmente tentando impor-se-lhe mas acabando, quase sistematicamente, por
dele depender em grande medida. Se nem tudo fluíu tão fácil e espontaneamente
como a música e a arte, o certo é que também a barreira institucional veio quebrando
as resistências face ao outro, ao estrangeiro, e ao imperativo da dimensão dos
mercados globais, especialmente financeiros. Fazendo jus à sabedoria popular,
foram também muitos os túneis que se cavaram, entretanto, por debaixo dos arames
farpados.
Tudo isto ignoram, ou fingem
ignorar, sobranceiramente, os donos directos e indirectos de Wall Street e
todos aqueles que acolitam “aquele cujo nome…”. Não nos iludamos, no entanto:
por trás da escalada de caos e desastre, operados por um personagem para-esquizoide
e seus seguidores, esconde-se, tudo o faz crer, uma estratégia de destruição
massiva que pretende substituir a democracia, mesmo que ambígua, pela
reintrodução dos aspectos mais negros e bem conhecidos dos nacionalismos, da
xenofobia e de outras formas de intolerância que pensávamos erradicadas,
levando a um auto centramento que sempre foi estranho à sociedade americana.
Como se se quisesse fazer desta um gueto anacrónico de protecção aos que
partilham o grande capital. Ou, melhor, uma cápsula do tempo onde jazam,
cristalizados, alguns dos resultados mais nobres da nossa civilização. Felizmente,
parecem começar a surgir as reacções “contra aquele cujo nome…”, mesmo no
interior do seu próprio partido. Pois que vinguem e sejam eficazes ou tornar-nos-emos
todos reféns encapsulados.
Como Sophia, vemos, ouvimos e lemos; mas, sobretudo, não podemos ignorar.
[1]
Adaptação ligeira de “aquele cujo nome não deve ser pronunciado”, relativo à
personagem, igualmente tenebrosa, de Valdemort, o vilão dos livros de Harry
Potter de J.K. Rowling. Aqui, infelizmente, personagem real.
[3]
“Quase”, porque estamos a assistir nos dias de hoje a um recrudescimento
significativo da violência racista institucionalizada, essencialmente na
polícia e forças armadas americanas, a par do reforço de formas de nacionalismo
que, como sabemos, ocorrem também na sociedade europeia actual, embora com
contornos diferentes.
[4] A
“museum mile”, no vernacular novaiorquino.
[5] Piketty,
Th. (2012). O capital no século XXI…
Não posso estar mais de acordo consigo, Margarida. Muito obrigada! Que tempos difíceis estes! Mas tem razão, acima de tudo "não podemos ignorar"
ResponderEliminarIsto é que é sabedoria!
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