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04 dezembro 2014

A pobreza, a legionella e o “toca a todos”


Durante a semana em curso têm tido lugar múltiplas iniciativas congregando o debate sobre a pobreza. Refiro, apenas, três exemplos: o programa Prós e Contras da RTP 1, a entrevista coletiva realizada na ETV e a iniciativa “toca a todos” da RDP 3 (neste caso, em particular, sobre a pobreza infantil).
A gravidade e a premência do escândalo da pobreza bem as merecem. Os caminhos por ela percorridos em Portugal, impõem-nas. Bem sei que são essencialmente debates e não serão poucos os que entendem que não passam de conversa e que não é com conversa que se elimina a pobreza. Só, parcialmente, têm razão.
Em primeiro lugar, porque a grande maioria dos que intervêm nos debates são gente, são personalidades, são instituições que, dia a dia, noite a noite, sem dia e sem noite para si próprios, fazem das suas vidas uma luta constante para que a pobreza seja menos sentida. Em segundo lugar, porque, também, com o debate se difunde informação e conhecimento sobre a realidade da pobreza e sobre o muito, que muitos fazem (incluindo os pobres) para que a pobreza seja menos violentadora e agressiva. Finalmente, porque é bom que os que trabalham no mundo da pobreza se encontrem, se questionem e se comuniquem experiências, que poderão gerar sinergias multiplicadoras da ação que desenvolvem e que, de outro modo, ficariam mais limitadas.
Dito isto, vale a pena caracterizar um pouco mais as iniciativas, que têm acontecido, as desta semana e, sobretudo as menos frequentes do passado recente. Elas têm procurado dar a conhecer as situações de pobreza, o seu volume e intensidade e o modo, ou os modos, de dar resposta às situações de maior carência. Têm dado conta do muito que a sociedade civil tem feito e, por vezes, do muito pouco com que o Governo se tem empenhado perante a calamidade que temos à nossa frente.
É como se estivéssemos perante uma epidemia, como se os hospitais fossem invadidos por multidões de doentes e se verificasse que quando mais estes precisavam de terapêuticas eficazes e de mobilização geral dos quadros médicos e de enfermagem, mais o Governo lhe virava as costas, porque argumentava que o que se dizia era puro alarmismo.
Não foi isso o que aconteceu com a recente epidemia da legionella. A competência e a dedicação das estruturas de coordenação, dos médicos e dos enfermeiros permitiram dar aos doentes que chegavam aos hospitais, uma resposta que foi considerada exemplar. Mas atenção, aqui, as estruturas de retaguarda não ficaram imóveis. Desde o início que se colocaram a questão de saber qual era a origem, o foco, da epidemia. Sabiam que enquanto não fossem identificados e neutralizados os doentes continuariam a entupir as urgências dos hospitais a ritmo que cresceria em progressão geométrica. Por isso, as equipas saíram para o terreno. E o que encontraram?
Empresas com torres de refrigeração não inspecionadas, ou mal inspecionadas que não deixaram dúvidas, após ponderação de outros fatores, de que era aí que se encontrava o foco da difusão da doença. Foram fechadas e as consequências são conhecidas: o ritmo de “produção” de doentes começou a diminuir a ritmo crescente. Não deixará de se colocar a questão de saber se o desinvestimento público em estruturas de coordenação, regulação e inspeção não justificará o aparecimento dos focos bacterianos.
E quanto à dinâmica da pobreza o que se passa? Tomando a analogia da legionella, tem-se cuidado dos doentes, i. e. tem-se procurado, através do trabalho de instituições da sociedade civil, tornar a vida dos pobres mais suportável. Eventualmente, alguns desses pobres ficaram menos pobres ou até, terão ousado sair para fora da situação de pobreza. Não quer isso dizer que perante o surto multiplicativo de pobres os cuidados sejam bastantes.
É, por isso, que também são importantes iniciativas como a da Antena 3. O problema da pobreza “toca a todos”, porque somos pobres, porque podemos vir a ser pobres, porque pelos nossos comportamentos, individuais ou coletivos, também somos responsáveis do aparecimento de fenómenos de pobreza, porque temos que nos mobilizar para ocorrer às situações de maior premência. A pobreza infantil, porque atinge os que dela menos se podem defender, bem merece o alerta e a solidariedade gerados pela iniciativa da Antena 3.
No entanto, raros terão sido aqueles que foram à procura das torres de refrigeração, i.e., das fontes e mecanismos que são os verdadeiros responsáveis pela “produção” de pobres. Por ex., nos debates do Prós e Contras e do ETV dois quase heróis ousaram começar a levantar o véu e ir espreitar o segredo da produção de pobres. Foi bom que o tivessem feito embora, infelizmente, não parece que tenham ou sejam muito escutados.
Na produção de pobres o segredo é complexo e imenso, mas não é, por isso, que nos devemos eximir a procurar abrir a porta da fortaleza onde se esconde o segredo. Por muito complexo e imenso que seja, já muito se sabe sobre o assunto. Não me proponho, aqui, fazer a anatomia do centro produtor e difusor de pobreza, mas o que se sabe já é suficiente para que não possa deixar de ser considerado quase pecaminoso nada fazer para neutralizar a atividade do centro.
O que já se conhece é que a “produção de pobres” é uma consequência da forma como se encontra organizada a economia e a sociedade. Enquanto não corrigirmos as suas estruturas, dos “centros produtores” continuarão a sair filas imensas de pobres. O Papa Francisco na sua Exortação Evangelli Gaudium bem alertou para que os germes da nova tirania se encontram no funcionamento da economia que gera desigualdade e exclusão; é nesse funcionamento que deve ser procurada a origem da produção de pobres e das situações de violência. É, por isso, que o Papa afirma que “esta economia mata”.
Quem mata é criminoso. É, também, criminoso nada fazer para evitar que os locais do crime continuem, a reproduzir-se. Os locais do crime são os que permitem a cumulativa concentração de riqueza nas mãos de uns poucos com o simultâneo desapossamento de muitos; a desigualdade extrema de repartição de rendimentos no processo de produção; a destruição das bases coletivas de funcionamento da sociedade, como se todos os problemas, de todos os cidadãos, pudessem e devessem encontrar solução por via de decisões individuais; a negação de saúde, de educação, de justiça, de habitação, de alimentação e de segurança, condignas e para todos, a todos garantindo igualdade de oportunidades (não esquecendo que a igualdade de oportunidades pressupõe a existência de situações de partida equitativas).
Não falta que fazer, mas com lucidez, para que os mecanismos que geram morte possam ser eliminados e substituídos. Não baste cuidar dos pobres; é indispensável intervir sobre as suas torres de refrigeração.

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