Durante a semana
em curso têm tido lugar múltiplas iniciativas congregando o debate sobre a
pobreza. Refiro, apenas, três exemplos: o programa Prós e Contras da RTP 1, a entrevista coletiva realizada na ETV e a iniciativa “toca a todos” da RDP 3
(neste caso, em particular, sobre a pobreza infantil).
A gravidade e
a premência do escândalo da pobreza bem as merecem. Os caminhos por ela
percorridos em Portugal, impõem-nas. Bem sei que são essencialmente debates e
não serão poucos os que entendem que não passam de conversa e que não é com
conversa que se elimina a pobreza. Só, parcialmente, têm razão.
Em primeiro
lugar, porque a grande maioria dos que intervêm nos debates são gente, são
personalidades, são instituições que, dia a dia, noite a noite, sem dia e sem
noite para si próprios, fazem das suas vidas uma luta constante para que a
pobreza seja menos sentida. Em segundo lugar, porque, também, com o debate se
difunde informação e conhecimento sobre a realidade da pobreza e sobre o muito,
que muitos fazem (incluindo os pobres) para que a pobreza seja menos
violentadora e agressiva. Finalmente, porque é bom que os que trabalham no
mundo da pobreza se encontrem, se questionem e se comuniquem experiências, que
poderão gerar sinergias multiplicadoras da ação que desenvolvem e que, de outro
modo, ficariam mais limitadas.
Dito isto,
vale a pena caracterizar um pouco mais as iniciativas, que têm acontecido, as
desta semana e, sobretudo as menos frequentes do passado recente. Elas têm
procurado dar a conhecer as situações de pobreza, o seu volume e intensidade e
o modo, ou os modos, de dar resposta às situações de maior carência. Têm dado
conta do muito que a sociedade civil tem feito e, por vezes, do muito pouco com
que o Governo se tem empenhado perante a calamidade que temos à nossa frente.
É como se
estivéssemos perante uma epidemia, como se os hospitais fossem invadidos por multidões
de doentes e se verificasse que quando mais estes precisavam de terapêuticas eficazes
e de mobilização geral dos quadros médicos e de enfermagem, mais o Governo lhe
virava as costas, porque argumentava que o que se dizia era puro alarmismo.
Não foi isso
o que aconteceu com a recente epidemia da legionella. A competência e a
dedicação das estruturas de coordenação, dos médicos e dos enfermeiros
permitiram dar aos doentes que chegavam aos hospitais, uma resposta que foi
considerada exemplar. Mas atenção, aqui, as estruturas de retaguarda não
ficaram imóveis. Desde o início que se colocaram a questão de saber qual era a
origem, o foco, da epidemia. Sabiam que enquanto não fossem identificados e
neutralizados os doentes continuariam a entupir as urgências dos hospitais a
ritmo que cresceria em progressão geométrica. Por isso, as equipas saíram para
o terreno. E o que encontraram?
Empresas com
torres de refrigeração não inspecionadas, ou mal inspecionadas que não deixaram
dúvidas, após ponderação de outros fatores, de que era aí que se encontrava o
foco da difusão da doença. Foram fechadas e as consequências são conhecidas: o
ritmo de “produção” de doentes começou a diminuir a ritmo crescente. Não
deixará de se colocar a questão de saber se o desinvestimento público em
estruturas de coordenação, regulação e inspeção não justificará o aparecimento
dos focos bacterianos.
E quanto à
dinâmica da pobreza o que se passa? Tomando a analogia da legionella, tem-se
cuidado dos doentes, i. e. tem-se procurado, através do trabalho de
instituições da sociedade civil, tornar a vida dos pobres mais suportável. Eventualmente,
alguns desses pobres ficaram menos pobres ou até, terão ousado sair para fora
da situação de pobreza. Não quer isso dizer que
perante o surto multiplicativo de pobres os cuidados sejam bastantes.
É, por isso,
que também são importantes iniciativas como a da Antena 3. O problema da pobreza
“toca a todos”, porque somos pobres, porque podemos vir a ser pobres, porque
pelos nossos comportamentos, individuais ou coletivos, também somos
responsáveis do aparecimento de fenómenos de pobreza, porque temos que nos
mobilizar para ocorrer às situações de maior premência. A pobreza infantil,
porque atinge os que dela menos se podem defender, bem merece o alerta e a
solidariedade gerados pela iniciativa da Antena 3.
No entanto, raros
terão sido aqueles que foram à procura das torres de refrigeração, i.e., das
fontes e mecanismos que são os verdadeiros responsáveis pela “produção” de
pobres. Por ex., nos debates do Prós e Contras e do ETV dois quase heróis
ousaram começar a levantar o véu e ir espreitar o segredo da produção de
pobres. Foi bom que o tivessem feito embora, infelizmente, não parece que
tenham ou sejam muito escutados.
Na produção
de pobres o segredo é complexo e imenso, mas não é, por isso, que nos devemos
eximir a procurar abrir a porta da fortaleza onde se esconde o segredo. Por
muito complexo e imenso que seja, já muito se sabe sobre o assunto. Não me
proponho, aqui, fazer a anatomia do centro produtor e difusor de pobreza, mas o
que se sabe já é suficiente para que não possa deixar de ser considerado quase
pecaminoso nada fazer para neutralizar a atividade do centro.
O que já se
conhece é que a “produção de pobres” é uma consequência da forma como se
encontra organizada a economia e a sociedade. Enquanto não corrigirmos as suas
estruturas, dos “centros produtores” continuarão a sair filas imensas de
pobres. O Papa Francisco na sua Exortação
Evangelli Gaudium bem alertou para que os germes da nova tirania se
encontram no funcionamento da economia que gera desigualdade e exclusão; é
nesse funcionamento que deve ser procurada a origem da produção de pobres e das
situações de violência. É, por isso, que o Papa afirma que “esta economia mata”.
Quem mata é
criminoso. É, também, criminoso nada fazer para evitar que os locais do crime
continuem, a reproduzir-se. Os locais do crime são os que permitem a cumulativa
concentração de riqueza nas mãos de uns poucos com o simultâneo desapossamento
de muitos; a desigualdade extrema de repartição de rendimentos no processo de
produção; a destruição das bases coletivas de funcionamento da sociedade, como
se todos os problemas, de todos os cidadãos, pudessem e devessem encontrar
solução por via de decisões individuais; a negação de saúde, de educação, de justiça,
de habitação, de alimentação e de segurança, condignas e para todos, a todos
garantindo igualdade de oportunidades (não esquecendo que a igualdade de
oportunidades pressupõe a existência de situações de partida equitativas).
Não falta que
fazer, mas com lucidez, para que os mecanismos que geram morte possam ser
eliminados e substituídos. Não baste cuidar dos pobres; é indispensável
intervir sobre as suas torres de refrigeração.
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