Mais uma vez nos prodigalizou a
chanceler alemã o seu conselho, sábio e paternalista: tal como outros países da
Europa do Sul, Portugal terá excesso de licenciados. Embora, ao que parece, o
Ministro Crato tenha expressado a sua timorata discordância face a tão
peremptória afirmação, o assunto merece reflexão mais atenta.
Com efeito, os responsáveis
governamentais e, desde logo, o Primeiro Ministro, já deram mostras de pensar
da mesma forma, convidando até a que emigrem os jovens que, em Portugal, não
conseguem obter emprego, de entre eles muitos licenciados. Por outro lado,
alguma opinião pública, menos esclarecida, também se expressa frequentemente no
sentido daquela douta afirmação, lamentando o dinheiro que os jovens universitários
estão a gastar aos pais para depois terem como destino o desemprego, já que “nem
todos podem ser doutores e engenheiros”.
Alguns ensinamentos da economia
da educação mostram-nos que aquela posição não tem razão de ser, ou, no mínimo,
não pode ser avançada como verdade absoluta. Recorrendo, desde logo, ao
argumento das comparações internacionais, constatamos facilmente que, muito
pelo contrário, a percentagem de licenciados na população adulta portuguesa dos
25 aos 64 anos mal atingia, em 2012, os 20% (32% na média da OCDE). E que, de
um conjunto de 41 países da OCDE, ocupávamos a 9ª pior posição relativamente
àquele indicador, também em 2012 (OCDE, 2014, Education at a Glance).
O peso significativo do
desemprego de licenciados e o aumento desta parcela no desemprego de longa
duração, aspectos fortemente devedores da recente crise, constituirão muito
provavelmente os principais factores por detrás daquelas opiniões: são as leis
do mercado e tais níveis de desemprego mais não significarão do que excesso de
oferta… É, então, altura de fazermos avançar o segundo argumento: e a procura?
O que sucede com a procura de licenciados por parte das empresas e do próprio
sector público, terão sido atingidos os níveis de saturação relativamente a
competências e qualificações de nível superior no tecido económico português?
Não precisarão, por isso, tais sectores de empregar mais licenciados? Uma breve
análise de dois indicadores mostra-nos precisamente o contrário:
-
a produtividade horária do trabalho, em 2013, era em média de 32,1€ na União
Europeia a 28 e de apenas 17,1€ em Portugal (EUROSTAT 2014, National Accounts);
-
os recursos humanos em Investigação e
Desenvolvimento (I&D), em equivalente a tempo inteiro (ETI) e em
percentagem da população activa, também situavam Portugal bastante aquém da
média daqueles países europeus, em 2012: 0,29 contra 0,58 no sector empresarial
e 0,05 contra 0,15 no sector público, embora com vantagem no ensino superior (0,56
contra 0,36).
Não se pretende querer dizer que
a inferioridade do valor médio da produtividade horária do trabalho em Portugal
face ao correspondente valor europeu se deva exclusivamente à escassez relativa
de trabalhadores altamente qualificado; determinantes como os modelos de
organização do trabalho, as políticas de formação, valorização e remuneração,
entre outros, desempenham também um papel fundamental no crescimento da
produtividade, aspecto que aqui não podemos desenvolver. No entanto, aqueles
indicadores e, sobretudo, a sua disparidade face aos níveis europeus revelam
claramente que o tecido empresarial português está longe da saturação face a
altas qualificações.
Porquê, então, a sua não procura,
nem absorção, por parte da actividade produtiva?
Em primeiro lugar, por uma razão
de curto prazo: com a escassez do mercado interno e a aleatoriedade da procura
externa, não se abalançam os empresários – muitos deles também pouco
qualificados – a aumentar a produção, ainda menos a introduzir melhorias
significativas de qualidade e de processos e, de todo, a investir em inovação.
Tenderão a sobreviver à crise utilizando apenas a mão de obra menos qualificada
e – apesar de tudo – mais barata, ou mesmo apenas parte desta. A produção
mantém-se, ou reduz-se, a um nível de sofisticação mínima, abranda-se o
controlo da qualidade e a manutenção, salvo raras excepções – frequentemente de
empresas não nacionais - corta-se por completo a inovação, nos poucos nichos
onde tinha lugar.
Em segundo lugar, e sem dúvida
mais decisivo, em virtude de uma total ausência de estratégia de longo prazo de
formação e valorização de recursos humanos, ao serviço de um modelo de
desenvolvimento democrático e inclusivo, sustentável e de bem-estar. À concepção e implementação das políticas
públicas tem faltado, em Portugal, uma visão integrada e de conjunto, coerência
e consistência intertemporais e, sobretudo, o protagonismo de um desígnio
nacional de efectiva independência económica e inclusão social. Não é, com
efeito, possível pensar-se (e repensar-se…) uma política educativa, por
exemplo, sem que essa concepção se faça conjuntamente com a de uma adequada
política de inovação económica e sem que ambas possam sustentar-se e alimentar,
por sua vez, uma política científica que seja bem mais do que um simples
pretexto de alinhamento com o grande capital internacional.
Não sabe disto, a Sra. Merkel?
Sabe-lo, decerto, bem demais. Quereria referir-se a um nosso “excesso” de
licenciados (ISCED 5, 6 A) face ao pouco peso que ainda detêm entre nós as
formações vocacionais e profissionais (ISCED 5, 6 B), de níveis intermédio e
superior, como as que resultam do modelo dual alemão, dizem alguns. Não ficou
claro; mas, a ser assim, também aquele modelo não pode ser tomado como uma
panaceia: esquecer-se-á a Sra. Chanceler do descalabro das classificações
alemãs em múltiplos testes internacionais (PISA, PIRLS, TIMSS…), grande
surpresa da última década? Quererá que, também em Portugal, as crianças de 10
anos comecem a fazer opções pela via de ensino regular ou vocacional (ou profissional…),
sem que tenham constituído uma base mínima de conhecimento teórico,
fundamentado, reflectido e apropriado? Com a falta de recursos que temos em
orientação escolar e vocacional, com a falta de informação de muitos dos pais,
que o mesmo é dizer com uma efectiva incapacidade de escolha?
Mas talvez nada disto tenha
constituído a razão de ser última daquela afirmação. É bom ter presente que
novos e importantes desafios se vão abrir à concorrência internacional, que com
o Tratado Trans-Atlântico novas reconfigurações se preparam no desenho da “economia
global”, ou melhor, nas relações de interdependência e subordinação dos novos
centros e das velhas periferias, cada vez mais condenadas estas a um papel secundário
na próxima (re)divisão internacional do trabalho. Para regressarmos às
vantagens comparativas (e não competitivas, propositadamente) em concentrado de
tomate, conservas de peixe e vinhos, ou, vamos lá, também no calçado e no
turismo, e com eles abastecermos a baixo custo o consumidor médio alemão ou
holandês, chegam-nos os licenciados que temos. Escusamos de criar mais
problemas aos mercados de trabalho dos donos do mundo.
Margarida Chagas Lopes
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