Como se tem vindo a reflectir em alguns posts deste e doutros blogues, a "saída" da troïka de Portugal, qualquer que seja a modalidade seguida - para o cidadão comum será sempre opaca e turva... - não virá a alterar substancialmente o actual estado de coisas. Em nossa opinião, aquele facto não constitui, por isso, qualquer marco de referência a não ser, muito provavelmente, o de transição para período de ainda maiores sacrifícios. Não é, por isso, ainda a altura de se poderem fazer balanços finais.
No entanto, nesta fase do processo tornam-se já extremamente visíveis os efeitos destruidores das políticas de austeridade em diversos domínios, como no processo de desenvolvimento do conhecimento.
Mercê do acumular de opções conservadoras, escassez e má orientação de recursos e, mais recentemente, da recuperação neoliberal dos mecanismos de mercadorização do conhecimento, o seu progresso tem vindo a fazer-se em Portugal de forma lenta e modesta, quando em confronto com a maioria dos Estados Membros Europeus. Este facto é tanto mais grave quanto se sabe que o processo social de conhecimento evolui pelo desenvolvimento de efeitos de externalidade e de arrasto que se propagam a uma série de sectores sociais e económicos e se caracteriza também pela natureza cumulativa e auto-sustentada da maior parte dos sucessivos resultados.
Por outro lado, uma questão central em Economia discute a natureza do bem conhecimento. Partindo da concepção clássica de conhecimento como bem público, veio progressivamente a constatar-se que cada vez menos estavam salvaguardados os princípios da não rivalidade e da não exclusão, dada a apetência pela privatização ou, no mínimo, restrição de acesso ao conhecimento específico útil para as organizações, através de patentes, licenças e mecanismos afins. Assim, a codificação progressiva do conhecimento, a par da legítima protecção dos direitos de autor que lhe estejam subjacentes, veio a tornar o conhecimento num bem misto ou, mesmo, privado.
Estes factos associam-se à necessidade de se vir a constituir uma visão global e holística do processo de conhecimento, indispensável a uma articulação socialmente eficaz dos seus constituintes fundamentais: a educação, a investigação e desenvolvimento, a inovação. Respondendo, sinteticamente, pela promoção de competências de base e superiores, pelo desenvolvimento de estudos avançados e de nível científico e pela promoção da capacidade de absorção, pelas organizações, daquelas competências e qualificações, a contribuição conjunta daqueles domínios para o processo de conhecimento só será eficaz se for servida por uma estratégia de desenvolvimento do conhecimento eficaz e efectiva. Na ausência desta - como sucede em casos como o Português - e face à não motivação, escassez de recursos e conflito de interesses da iniciativa privada para intervir em tal domínio, o papel do Estado é fundamental no processo de correcção dos inevitáveis desequilíbrios, especialmente agora que o conhecimento se torna cada vez mais rapidamente obsoleto.
E quais são, essencialmente, aqueles desequilíbrios? Entre outros, o desemprego e emigração das altas qualificações, o estatuto cada vez mais precário dos bolseiros de investigação e cientistas, a desqualificação progressiva da estrutura de ocupações, a baixa produtividade das organizações. E, essencialmente, a ausência ou redução extrema dos desejáveis efeitos positivos em termos de crescimento sustentado e desenvolvimento económico e social.
Mas regressemos ao estado da situação, indicando dois ou três resultados muito simples mas elucidativos. Depois de seis a sete anos de profunda crise económica e social e de três anos de austeridade e de inconsistência das políticas públicas, a actuarem de forma pró cíclica quando deveria ter sido o oposto, constatamos então, entre outros resultados:
1- apesar de um notável progresso desde o início do século, a taxa de abandono precoce da escola, no grupo dos 18 aos 24 anos de idade, era em Portugal de 19,2% em 2013, terceira pior situação depois de Malta e Espanha (PORDATA, www.pordata.pt);
2- a percentagem da população, dos 25 aos 64 anos, tendo concluído o Ensino Superior, em 2013, era em Portugal de 17,3% contra 25,1% na média da União Europeia (EUROSTAT, http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/statistics/search_database) ;
3- em 2012, a percentagem da população activa portuguesa com ocupação em actividades de Ciência e Tecnologia, 22,6%, estava cerca de 10 p.p. abaixo do correspondente valor europeu (EUROSTAT, http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/science_technology_innovation/data/database);
- ...
Porquê a escolha destes indicadores? Porque ao mesmo tempo que o Estado português assinava com a Comissão Europeia (e também FMI e BCE) o Memorando de Entendimento que nos impôs os sacrifícios e retrocessos conhecidos, ratificava igualmente a Estratégia 2020, pela qual se comprometia a melhorar significativamente o desempenho nos domínios acima referidos e a atingir, em 2020, as metas de 10% (1), 40%, na população de 30 a 34 anos (2) e pelo menos 3% do PIB investido em investigação e desenvolvimento, contra os actuais 1,5%...
E qual tem, então, sido o comportamento do Governo associado a estes resultados?
- uma diminuição sistemática, a partir de 2009, do investimento público executado, afecto a educação, em percentagem do PIB: em 2012, e após uma quebra de cerca de 10% naqueles três anos, situávamo-nos, face a este indicador, num nível idêntico ao executado em 1991 e nunca, entretanto, retomado;
- a percentagem de gastos públicos em investigação e desenvolvimento decresceu igualmente cerca de 10% desde 2009, situando-se em 2012 num nível inferior ao alguma vez atingido desde 2000;
- entre 2007 e 2012, o número de bolsas de doutoramento financiadas publicamente diminuíu 40%, sendo visível já um recuo significativo no número de doutorados por ano;
- do mesmo modo que se verificam retrocessos ao nível das competências de base: as notas de exame em Matemática e Português do 3º ciclo diminuíram drasticamente no último ano e, ainda mais significativo, o inquérito PISA 2012 revela-nos ter havido uma diminuição de 4 p.p. no índice de literacia dos jovens portugueses do 9º ano, contra um progresso importante registado na edição anterior daquele inquérito (OCDE, www.oecd.org/pisa )...
É altura de relembrarmos o que atrás referimos quanto à natureza cumulativa, parcialmente auto-sustentada e temporalmente duradoura dos progressos do conhecimento. Ou, de forma inversa, que interrupções e cortes no financiamento dos motores do conhecimento, como a educação e a investigação e desenvolvimento, tendem a ter repercussões negativas e exponenciais ao longo do tempo. E, por ora, só estamos a assistir às primeiras manifestações.
Na ausência de uma estratégia própria e de compromisso efectivo com o bem estar económico e social do País - que deveria constituir o principal desígnio face aos grandes interesses internacionalmente impostos - o Governo português comporta-se como o Arlequim servidor de dois, ou vários, amos: não cuidando de verificar se as ordens recebidas são compatíveis ou antagónicas, como sucede com os ditames da troïka e os objectivos da Estratégia 2020, apresta-se a segui-las disciplinada mas inconsistentemente, sempre fazendo tábua rasa dos verdadeiros interesses nacionais.
Margarida Chagas Lopes
(adaptado de "The
Development of Knowledge in Portugal – a slow and unsustainable progress", disponível em
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