No passado fim
de semana, durante todo o dia de sábado (07-03-20) realizou-se, no ISEG, uma evocação
da vida e obra de Manuela Silva, que se finalizou com a atribuição póstuma, pelo
Sr. Presidente da República, da Grã-Cruz da Ordem de Instrução Pública.
A inspiração
Foram muitas as
facetas de Manuela Silva que foram evocadas, sempre na perspectiva do que elas dizem,
para os dias de hoje e para o futuro. Uma delas, que, porventura, tem sido menos
falada, foi a do planeamento. Pela sua actualidade, importa, aqui, trazê-la à reflexão.
Sobre o planeamento, Manuela Silva deixou-nos inspiração através, sobretudo, dos
ensinamentos que deixou, no ISEG, na disciplina de Teoria e Técnicas de
Planeamento e do legado que permanece, depois da sua passagem pela Secretaria
de Estado do Planeamento.
Na Secretaria
de Estado e do Planeamento, para além da orgânica de Planeamento que
implementou, deixou-nos um valioso Plano de Desenvolvimento a Médio Prazo que,
infelizmente, as instâncias políticas de então desvalorizaram, o que levou à
sua demissão. Depois disso nunca mais se voltou a falar de planeamento macroeconómico
com princípio meio e fim. Tentarei, mais
abaixo, ensaiar uma explicação para que isso tivesse acontecido. São, hoje, várias as
figuras de programação de políticas que utilizam a designação de “planeamento
ou programa” (grandes Opções do Plano, Plano de Desenvolvimento Regional, Programas
Operacionais) que, de planeamento apenas têm o nome ou o aroma.
Porquê, hoje, o planeamento?
Mas que
relevância tem estarmos, hoje, aqui, a falar de planeamento? Para melhor o
compreendermos, tentemos caracterizar o que é o planeamento e depois ver porque
é que voltamos ao assunto.
Planear
significa antecipar o que se prevê possa vir a acontecer no futuro, em razão
das nossas escolhas, ou de circunstâncias que não dependem de nós, e organizar
os meios necessários para que a sua realização possa vir a acontecer, com o
máximo de eficácia e eficiência. A necessidade de planearmos tanto se coloca ao
nível das realizações individuais, como do que pretendemos realizar enquanto
sociedade.
Há uma
justificação adicional para a necessidade do planeamento. No planeamento socioeconómico,
a prossecução de objectivos comuns implica que todos os que estão envolvidos,
quer com os objectivos, quer com os meios, consensualizem, os objectivos que
querem atingir e a forma de mobilizar os meios necessários à sua realização.
A vida em
sociedade é, necessária e inevitavelmente, uma gestão permanente de
interdependências, que podem ter graus diversos, mas não deixam, por isso, de
existir. A imagem mais perfeita do que entendo ser a vida em sociedade é a do
funcionamento do corpo humano, em que tudo está ligado e dependente de tudo. O
mau funcionamento de um órgão, directa ou indirectamente, tem consequências sobre
o funcionamento dos restantes, o que tem consequências sobre a sobrevivência do
conjunto. A análise sistémica desde há muito que nos alertou e ensinou que
assim é.
A construção de
infraestruturas
Entre as
componentes essenciais de uma vida em sociedade encontra-se a construção de infraestruturas,
por ex. um aeroporto, um porto, um terminal de contentores, uma linha ferroviária,
as estradas e autoestradas, etc. Poderá a decisão sobre a construção de
qualquer destas infraestruturas ser tomada independentemente das decisões que
são implementadas sobre as restantes?
O que fica
dito, atrás, mostra bem que não. Mais claramente o mostram, as polémicas que
temos visto surgir em torno da construção do aeroporto do Montijo, do terminal de
contentores do Barreiro, da infraestruturação ferroviária do país e tantos
outros. O que pode justificar que se tenha chegado a um ponto em que os
principais decisores políticos actuam como que independentemente uns dos outros?
O exercício do planeamento teria permitido estabelecer coerência entre as
várias iniciativas.
A destruição da orgânica de
planeamento e do capital de conhecimento adquirido
Acontece que o
planeamento foi, propositada e irresponsavelmente, arredado dos nossos horizontes,
enquanto indispensável instrumento de racionalidade das decisões públicas.
Vários
têm sido os argumentos avançados para o justificar:
- Num mundo em mudança e incerteza permanente,
a existência do planeamento apenas serve para criar rigidezes que dificultam a
necessidade de grande flexibilidade no ajustamento das várias decisões a ser
tomadas; o argumento é falso; a incerteza e a mudança são as razões principais para
a existência do planeamento; por isso o planeamento sempre foi caracterizado
com processo de redução de incertezas;
- O planeamento é um resquício do
funcionamento de economias de direcção central que. como está mais que provado,
caiu em colapso; aos que assim argumentam apenas podemos chamar ignorantes; enquanto
existia planeamento de direcção central, existia, também, e com características
completamente diferentes, o planeamento nas economias de mercado.
Vale a pena
perguntar, se as famílias e as empresas planeiam a sua actividade, que vírus
estranho é que pode impedir que tal não possa acontecer no âmbito das decisões
públicas? Há uma explicação que tem características de grande mesquinhez.
A experiência
portuguesa de planeamento, embora muito rica, se excluirmos o Plano Manuela
Silva, construiu-se ainda antes do 25 de abril. Porque é que não continuou a
desenvolver-se com metodologias próprias dos novos tempos.
Tenho uma
explicação. O surgimento de novos actores políticos, económicos e sociais fez
que cada um deles quisesse construir o seu próprio protagonismo, independentemente
das condicionantes que o planeamento lhes poderia impor. Por isso, de forma
determinada, se deu início à destruição de toda a orgânica de planeamento, nos
vários ministérios e, por essa via, também, a desqualificação da máquina do
Estado. Quem ganhou com isso?
Para além da
falsa liberdade com que se dotaram os governantes, ganharam os gabinetes
privados de projectistas, de advogados, de engenheiros de arquitectos, etc. Muitos
anos serão necessários para recuperar o que perdemos, mas enquanto tal não for
conseguido, o desperdício de recursos e a ineficiência colectiva terão campo
aberto para continuarem a manifestar-se. Os portugueses continuarão mais
pobres.
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