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28 junho 2019

Das Parcerias Público-Privadas (PPP) às Parcerias Privado-Públicas (PPP)

Formulação estranha? Nem por isso, e perfeitamente justificada, como veremos, a seguir.
 
Com ânimos mais ou menos exaltados, muito se tem dito e escrito sobre as parcerias público-privadas, e, nem sempre, com a racionalidade que as circunstâncias exigiriam. Recentemente, tal tem acontecido entre nós, por ex., no âmbito do Sistema de Saúde Público (SNS). Abaixo, tomarei esta como principal referência.
 
Parece que já tudo terá sido dito. Do meu ponto de vista, ainda não foi. E, sobre as parcerias privado-públicas não conheço que alguma coisa se tenha refletido até agora. Uma análise ponderada destas últimas teria mostrado que o debate das primeiras mereceria ser feita de forma menos extremada.
 
1. A gestão privada dos serviços públicos
Vejamos algumas das características das parcerias público-privadas. Com as parcerias público-privadas pretende-se possibilitar que a iniciativa privada possa ser aceite, para realizar, de forma mais eficiente, a gestão de instituições públicas ou de projetos que têm como objeto a promoção do bem público.
 
Será que é justificável? Há argumentos que justificam o não e argumentos que justificam o sim. Vejamos de onde é que vêm os argumentos do não. As instituições públicas e serviços do Estado têm como vocação e motivação a produção e distribuição de bens e serviços públicos. São bens e serviços que, quer no processo de produção, quer no processo de distribuição, não podem ser objeto de exclusividade, nem de rivalidade, por quem os produz e distribui, ou por quem os consome e deles beneficia. Esta sua natureza decorre de circunstâncias objetivas e não de juízos morais ou ideológicos. Reconhecidas essas circunstâncias opções de índole política poderão ter que ser tidas em consideração.
 
Tem-se desenvolvido uma extensa literatura tendente a justificar que em nada é modificada esta natureza, se a gestão destes bens e serviços for realizada pela iniciativa privada, pois que, na maioria dos casos, tenderá a criar maiores benefícios para a sociedade, já que consegue realizar essa gestão em condições de maior eficiência (o Estado, diz-se, é mau gestor e bom gastador). É este o argumento do sim.
 
Parece um bom argumento, mas não é. Para vermos que não é, importa que compreendamos o que é que quer dizer fazer a gestão, de uma instituição pública ou de uma instituição privada.
 
2. Em que consiste a gestão?
Gerir significa:
1.    Mobilizar e combinar os meios disponíveis, de forma a alcançar os objetivos fixados e a obter os melhores resultados (curto e médio prazo);
2.    Mobilizar e combinar os meios disponíveis, respeitando regras de comportamento coletivamente aceites;
3.    Adoptar, não apenas, comportamentos de curto e médio prazo, mas, também, saber compatibilizá-los com objetivos de longo prazo, quer no domínio dos meios que possam vir a ser obtidos, quer no domínio da evolução dos objetivos que a sociedade pretende ver satisfeitos.
 
Ora, pode aceitar-se que a iniciativa privada é capaz de realizar, no curto prazo, uma gestão mais eficiente do que a iniciativa pública recebendo, em contrapartida, a prestação financeira que tiver sido negociada no contrato de concessão. No entanto, já se vê com dificuldade como é que a iniciativa privada é capaz de reunir condições para dar resposta aos segundo e terceiro objetivos da gestão, acima referidos.
 
Para garantir a sustentabilidade dos meios e dos objetivos (numa perspetiva de longo prazo) torna-se necessário realizar o seu planeamento tendo esse horizonte como tempo de referência. Com certeza que, tanto as instituições públicas, como as privadas fazem, ou deveriam fazer, planeamento de longo prazo. O que não o fazem é com o mesmo animus.
 
A iniciativa privada não pode deixar de ter como motor a obtenção de lucros e a sua distribuição pelos titulares da iniciativa, com vista ao seu benefício imediato ou à realização de investimentos que garantam que a obtenção de lucros continua a ter sustentabilidade.
 
Com a iniciativa pública o motor não é o lucro, mas sim a prestação do melhor serviço público, mesmo se possa existir como objetivo a obtenção de benefícios. Só que os benefícios obtidos têm uma afetação diferente dos lucros, uma vez que só podem ter como objeto a melhoria das condições de prestação dos bens e serviços públicos.
 
Assim, a iniciativa pública e a iniciativa privada têm, num horizonte de longo prazo, motivações e comportamentos diferenciados. Não se vê como é que, nesse horizonte, a iniciativa privada pode vir a produzir melhores resultados do que a iniciativa pública, na gestão dos serviços públicos.
 
3. Os desmandos da gestão pública
É verdade que, no curto prazo, os desmandos que têm caracterizado a gestão dos serviços públicos, nomeadamente no sistema nacional de saúde, têm permitido que os resultados da gestão da iniciativa privada surjam como mais satisfatórios, mas nesses casos o que há que fazer é corrigir os referidos desmandos. No âmbito da saúde, mesmo quando a iniciativa privada é apontada como referência na gestão das instituições privadas, isso só tem sido possível mediante a transferência de recursos humanos e financeiros, cuja sução realiza junto do Estado ou das instituições públicas. A melhor gestão privada só tem sido conseguida através de recursos alheios.
 
Num tempo em que tanto se tem falado de florestas, a plantação de eucaliptos é um bom exemplo para melhor compreender o que tenho referido no âmbito da saúde. É verdade que, quer os particulares, quer as celuloses, conseguem, em horizontes de tempo limitados, obter rendimentos interessantes, com a plantação de eucaliptos. A questão é a de saber se esses rendimentos são sustentáveis. Para justificar que o não são, basta pensar que as celuloses não renovam os contratos com os particulares ao fim de três ou quatro ciclos de contratos. A razão é simples: é que ao fim de 30 ou 40 anos as plantações esgotaram de tal modo os nutrientes dos solos que deixa de lhes ser rentável continuar as explorações nesses terrenos.
 
O mesmo se pode pensar em termos de serviços públicos. A iniciativa privada só tem interesse em aí permanecer enquanto puder continuar a extrair recursos, i. e., a esgotar a fertilidade desses serviços.
 
4. A justificação do título
Para terminar, uma justificação para o título. Embora esta questão seja, normalmente abordada no início dos textos, aqui justifica-se, perfeitamente, que surja no fim, como se verá.
 
Se, em certas circunstâncias a iniciativa privada pode, na gestão de serviços públicos, ser mais eficiente, daí resultando maiores benefícios para os cidadãos, nada pode excluir que, em outras circunstâncias, a gestão pública possa produzir, nas instituições privadas, melhores resultados que a gestão privada, e isso em benefício de toda a sociedade. Só que, então, não faltaria o grande clamor do “Aqui D’el Rei”, que lá vêm eles, de novo, com as nacionalizações. Claro que o mesmo clamor não se manifestou e não se manifesta quando, em sentido contrário, se procedem a movimentações de privatização dos serviços públicos.
 
Está, por isso, perfeitamente justificada a possibilidade de poderem e deverem existir “parcerias privado-públicas”! Eu, por mim, abraçarei os méritos das parcerias público-privadas quando, nos mesmos termos, forem reconhecidos os méritos das parcerias privado-públicas.

 

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