Parece uma
evidência incontestável que o mundo se nos está mostrando cada vez mais
inseguro. Todos, nos interrogamos onde é que os novos jogos da geoestratégia
mundial nos podem ainda levar, reforçando a insegurança que sentimos. Até há poucos
anos, aqui e acolá havia sinais de instabilidade, mas todos acreditávamos que
as instituições tinham capacidade para os neutralizar. Hoje, temos menos
certezas. Não encontramos respostas e, justificadamente, ficamos preocupados.
Não creio que os
populismos que grassam em vários continentes nos possam trazer algo de bom. E,
no entanto, os populismos desenvolvem-se porque há muita gente que neles acredita.
Surgem e desenvolvem-se minando as instituições que, muito laboriosamente,
foram criadas no pós-guerra e que são suporte do que hoje conhecemos como sendo
o Estado Social. Ruidosamente somos acordados pela chegada ao poder desses
populismos, por via eleitoral. As eleições que sempre foram tomadas como
instrumento fundamental de funcionamento e consolidação das democracias, surgem,
agora, como arma que pode provocar a sua destruição.
Foi o que vimos
acontecer nos EUA, no Brasil, na Itália, na Hungria na Polónia. Em outros
países, esta maré ainda não chegou ao poder, mas está pronta para dar golpes
eficazes para poder atingir esse objetivo: Holanda, França (manifestações dos
coletes amarelos), Espanha (últimas eleições na Andaluzia).
O que é que
pode explicar esta hecatombe? Na minha opinião a explicação encontra-se, em
grande medida, no comportamento de um estrato social que se chama “classe média”.
E então porquê? A seguir procurarei trazer alguns elementos de clarificação.
Nas designadas
democracias estabilizadas, as classes médias começaram a deixar de fazer parte
das principais preocupações dos decisores das políticas económicas e sociais.
De algum modo o seu estatuto serve de modelo para os objetivos das políticas de
distribuição de rendimentos. Estas têm
tido como preocupação central a correção dos desequilíbrios verificados nos
rendimentos auferidos pelos mais ricos e pelos mais pobres, embora ainda seja
longo o caminho a percorrer.
Continuamos a verificar
que os mais ricos se estão a tornar ainda mais ricos e os mais pobres, ainda
mais pobres, embora, aqui e acolá, se possam ter verificado melhorias no nível de
bem-estar. Ora, se assim é, pelo menos em termos relativos (e, por vezes,
também, em termos absolutos), quem vê a sua posição deteriorar-se é
precisamente a classe média.
As bases da sua
estabilidade começaram, pouco a pouco, a ser postas em causa, tanto através do nível
de rendimentos recebido e percepcionado, como através da segurança sentida no
dia a dia. A corrupção real ou imaginária, generalizada ou pontual, por parte
dos mais ricos e da classe política, passou a ser um dos elementos da explicação
do mal-estar que, individual e coletivamente, se começou a sentir.
Mas há mais. Mesmo
que em termos absolutos a posição da classe média não se tenha deteriorado, o
que é verdade é que para todas as classes, e também para ela, não são relevantes,
apenas, os níveis absolutos de rendimentos, mas também a sua evolução e a
modificação de posições relativas ao longo do tempo. Se as posições relativas da
classe média se deterioram, ela vai reagir, ficando pronta a seguir qualquer “duce”
que lhe prometa a salvação.
A classe
política deixou de ser capaz de falar com e para as classes médias. Tem
preocupações e utiliza uma linguagem que elas não entendem. As bases do
funcionamento do sistema democrático são postas em causa e embrulhadas no
pacote do “isto é tudo a mesma cambada; estão todos a encher os bolsos à nossa
custa”. Os salvadores, mesmo sem apresentarem qualquer programa político, sem
discutirem qualquer ideia com os seus interlocutores, vão a eleições e obtêm estrondosas
vitórias (vide o que se passou, por
ex., com Trump e com Bolsonaro). Como coelhos saídos de uma cartola, ninhadas de
outros exemplares estão aí para nos bater à porta.
Em Portugal, a explicação
até aqui apresentada pode, com grande utilidade, ser confrontada com a dinâmica
de greves e reivindicações que temos visto acontecer desde há alguns meses e
com a intensidade que têm assumido nos últimos tempos: professores, técnicos de
diagnóstico, enfermeiros, empresas de transporte, funcionários judiciais,
guardas prisionais, bombeiros, estivadores, etc.
O direito
constitucional à greve não pode, em nenhuma circunstância, ser posta em causa.
Ele é, também, um mecanismo de ajustamento do funcionamento democrático da
sociedade. O que podemos interrogar-nos é sobre se, sempre que acontecem, estão
verificados os pressupostos que justificaram a sua consagração constitucional, nomeadamente
o de constituir o último recurso num processo reivindicativo e negocial.
Não tenho
qualquer dúvida que as greves a que vimos assistindo têm na sua base a
alteração de situações, profissionais ou outras, que são justas. Fico, no
entanto, muito perplexo com a sua grande simultaneidade no tempo e, quase
sempre no espaço. Não vejo que sejam convenientemente tidos em conta os
inconvenientes provocados pelas greves junto daqueles que recorrem aos serviços
das instituições onde os grevistas trabalham.
Não pode deixar
de se colocar a seguinte questão: em que medida é que a existência de greves se
justifica pela teimosia a arrogância dos trabalhadores, das entidades patronais
ou de ambos? Temos o sentimento de que o bolo a repartir cresceu e de que a
luta por uma maior fatia garante aos beneficiários maior força política e negocial.
Só uma grande sabedoria política e capacidade de negociação podem garantir que
se encontrem soluções justas.
Entretanto e
contrariamente ao que acontece em França, com o movimento dos coletes amarelos,
as reivindicações em Portugal têm protagonistas e têm rostos, o que deveria
permitir chegar a resultados mais rapidamente do que o que temos visto acontecer.
Finalmente, um
comentário em torno das contrariedades que as greves provocam ao paralisarem
total ou parcialmente serviços, nomeadamente públicos. Tomemos com referência
os hospitais e as escolas. Os seus beneficiários são, essencialmente, pessoas
oriundas das classes médias e pobres; os outros têm dinheiro suficiente para poderem
procurar outras alternativas.
Será que se têm
ponderado convenientemente que, para além dos prejuízos imediatos com a não
prestação de serviços, aqueles que nisso são envolvidos vão, no seu silêncio, desenvolvendo
sentimentos de insatisfação que, pouco a pouco, os leva a terem apetência para desejar
e aceitar que possa vir alguém que ponha um pouco de ordem nisto tudo.
Assim se criam
condições para, de forma mais ou menos barulhenta, ou mais ou menos sub-reptícia,
se afirmarem os movimentos populistas que, sem dificuldades, ganham eleições.
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