03 julho 2017

Capitalização, descapitalização e outros negócios com o Estado

 
Nas últimas semanas tem-se falado, com exagero, sobre os responsáveis das últimas calamidades que nos assolaram (e aqui incluo os incêndios e Tancos) e da necessidade da sua culpabilização. Vemos na televisão entrevistas a personalidades a quem, sistematicamente, se pergunta quem na sua opinião, foi o culpado disto ou daquilo, como se a determinação de culpabilidade dependesse da opinião de quem quer que seja, por muito relevante que seja a sua posição institucional ou autoridade científica.
A culpabilização tem sido o tom dominante, quer de políticos, quer da comunicação social, tradição que pretendendo recuperar a tradição portuguesa, felizmente terminada, de celebrar e acompanhar com gáudio a execução, na praça pública, de condenados. Se não existissem, inventavam-se!
Como é que se pode admitir tal exagero quando se sabe que os responsáveis só poderão vir a ser identificados na sequência de inquéritos em curso que, para serem levados a bom termo, demoram mais tempo que o que cada um de nós desejaria.
Porque não está dependente da finalização de inquéritos, mais oportuno seria que, desde já, se começasse a refletir sobre as causas, que sabemos poderem ser múltiplas e que por serem múltiplas não devem ter como consequência atirar com o saco para trás das costas, mas antes e desde já, começar a esgravatar o terreno.
Tem-se falado pouco, e seria oportuno que se falasse mais, sobre a questão de saber em que medida é que uma parte das causas não poderá ser encontrada através da perceção, que generalizadamente se vai tendo, de que as estruturas institucionais do Estado se vêm degradando e que a qualidade dos serviços que presta, ou deveria prestar, vai possuindo pior qualidade em número significativo das suas instituições.
Nesta matéria nunca tudo esteve bem, mas é reconhecido que o processo de degradação é contemporâneo do debate de “menos Estado e melhor Estado”. Pode-se ter menos Estado, aumentado a eficiência do funcionamento das estruturas concebidas para dar resposta às opções tomadas por um país, mas também se pode ter menos Estado destruindo as estruturas que suportam a satisfação daquelas opções. 
Em Portugal, é à valorização da segunda alternativa que temos vindo a assistir desde meados dos anos 80. O argumento mais utilizado é o de que a iniciativa privada, no quadro daquelas opções, dá respostas de melhor qualidade e de menor custo do que as que seriam obtidas se a sua satisfação fosse realizada no âmbito do Estado. Não surpreende que venhamos, agora, a encontrar nos órgãos de gestão das empresas que acolheram as funções privatizadas muitos dos que promoveram o processo de privatizações. 
 
Assim se justificou e justifica o tsunami das privatizações e operações equivalentes. Naturalmente que as estruturas do Estado não são estáticas e podem evoluir na sua configuração, mas isso é uma coisa e outra coisa é cortar na estrutura alguns dos seus elementos essenciais.
Os que o promoveram, ou acolheram, o tsunami, esqueceram-se de que a prestação de bens e serviços públicos possui elevado grau de interdependência entre si e que a forçada desagregação gera, a mais ou menos longo prazo, ineficiências, tanto nas instituições públicas, como nas privadas, cujas consequências vemos agora manifestar-se em toda a sua pujança.
A propósito da degradação das funções prestadas pelo Estado, não quero terminar sem referir uma outra dimensão da degradação das funções do Estado. Trata-se da extinção ou da diminuição da importância e da qualidade técnica de certas funções do Estado. Por ex., a extinção de instituições como o Conselho Superior de Obras Públicas ou os Gabinetes de Planeamento dos ministérios. Dizem-me que isso aconteceu por duas razões. A primeira é a de que dessa forma os titulares dos órgãos políticos se sentiam mais livres para tomar as decisões que muito bem entendessem, sem ter que estar sujeitos ao parecer de órgãos técnicos que, de um modo ou outro, podiam condicionar a sua ação. A segunda é a de que, não podendo dispensar completamente pareceres técnicos ou jurídicos, esses titulares de órgãos de poder passavam a ter um bom argumento para poder pedir esses pareceres aos gabinetes de consultoria (jurídica, engenharia, económica e gestão) existentes no mercado, em que depositavam maior confiança. A circulação de titulares de órgãos de poder entre esses órgãos e os gabinetes é conhecida.
São também conhecidos os malefícios a que tem conduzido esta degradação das funções do Estado. A ineficiência e a falta de articulação de respostas, que deveriam ser dadas face às grandes calamidades, estão aí presentes com toda a sua pujança. Ainda poderemos ir a tempo de corrigir, embora com dificuldade, esta degradação.
Ela exige, no entanto, que se inicie uma verdadeira capitalização dos Serviços do Estado. Não me parece que tendo ela sido considerada como admissível em relação aos bancos, possa ser descurada quando está em causa o exercício por parte do Estado de funções que são garantia do funcionamento sustentável do nosso modelo de sociedade.

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