O último e excelente
contributo de Isabel Roque de Oliveira neste blogue, a propósito do último
livro de Stiglitz sobre a crise europeia, dá muito que pensar e não menos “pano
para mangas”. Eis umas breves notas que aquele post ajudou a despoletar.
Aparentemente, o Brexit não provocou tantos danos de
curto prazo como se previa, as salas dos corretores mantêm-se relativamente
tranquilas no seu frenesim habitual e os inefáveis mercados não revelaram
ter-se assustado em demasia. Continua, aparentemente, a reinar a paz podre,
para tranquilidade dos grandes mentores e da burocracia de Bruxelas. E no
entanto, nunca a crise do chamado projecto europeu terá sido tão intensa e
complexa como aquela que agora vivemos, adormecida ainda pelo meio gás do fim
de verão.
É um lugar-comum dizer-se
que a crise da União Europeia (U.E.) é multidimensional, pese embora o facto de
o pensamento económico dominante insistir no seu carácter essencialmente
económico e financeiro: a culpa é dos estados membros (EEMM) não cumpridores
das regras impostas pelo modelo económico europeu, o que quer que seja que tal
signifique; ou melhor, daqueles EEMM que, não podendo cumprir normas, pactos e
regulamentos feitos à sua revelia e contra os seus interesses, nem sempre têm tido
suficiente poder e vontade políticos para os ignorar como faz, pode fazer, a
França. Longe de ser meramente económico, o problema é no fundo essencialmente
político e passa, designadamente, pela total subordinação dos parlamentos
nacionais e, em certa medida, até do europeu, aos ditames das instâncias de
poder económico da U.E. e, ainda mais, da União Monetária. Com tal estado de
coisas se recusam a compactuar os movimentos autonómicos, aproveitando-se
oportunisticamente os nacionalismos de extrema direita para tentar impor as
suas agendas.
Se é certo que em alguns
meios de decisão económica se começa a admitir, timidamente, que as receitas impostas
foram afinal contraproducentes, a verdade é que continua a imperar a política
de “dois pesos e duas medidas”, por razões que não deixam de ser também elas fundamentalmente
políticas e de que são exemplo: a necessidade de manter zonas tampão para
suster na periferia – Grécia e Itália - a crise humanitária do deslocamento das
populações fugidas à guerra e restantes misérias; a contenção das tentativas de
“deriva” ideológica e política dos países ibéricos, apesar da crescente
supremacia económica de uma Espanha que, embora em continuada crise política, não
deixará certamente de vir a fazer valer o poder negocial que lhe advém do bom desempenho
da sua economia; a supremacia política alemã alicerçada, agora que findaram os
impérios, numa robustez económica sustentada e, aparentemente, sustentável e para
a qual muito têm contribuído medidas de política económica interna que pouco
têm tido a ver com o neoliberalismo dominante, seja por pressão dos eleitores
alemães, seja - ainda que inconfessadamente - pelo descrédito nas virtualidades
do “modelo económico europeu”… Pensar hoje na Europa como projecto político
unificado e comum, cujos fundamentos os “pais fundadores” procuraram verter em
1958 no Tratado de Roma, surge-nos hoje como uma utopia irrealizável. Bem o
tinham analisado e previsto alguns historiadores como Eric Hobsbawm[1], entre outros.
Às dimensões política e
económica da crise europeia associa-se, como seria inevitável, uma tremenda
crise social. Milhões de desempregados, de jovens sem perspectivas de futuro e
com enormes insuficiências de formação, de famílias sem um mínimo de rendimento
condigno de sobrevivência, de idosos cada vez mais empobrecidos, doentes e
desamparados. A crise do modelo social europeu – modelo esse que constituíu,
enquanto pôde, o único motor de integração de
facto, de inclusão e de solidariedade europeias - constitui a principal
razão da profunda crise social. O neoliberalismo dominante assim o impôs, para
se ver agora sem soluções à medida da catástrofe que não cessa de se agravar.
Mesmo que o não admita aberta e explicitamente, o pensamento e a política dominantes
estão em profunda crise, sem saber o que fazer de um modelo económico e social que
só consegue gerar estagnação económica e desigualdades crescentes em todos os
segmentos da economia e finanças da U.E.; para culminar num fracasso total na sua
tentativa de afirmação económica e política face aos Estados Unidos, como
parece ser o desfecho do TTIP.
Que fazer da Europa? Será
possível que resista à presente crise sem um processo de refundação total? E, a
ser assim, como poderá este ser conduzido sem se correr o risco de vir a ser
protagonizado pelo nacionalismo retrógrado ou pelas tentações de uma hegemonia
neo-imperial sempre latente? Nestes termos, será o futuro da Europa compatível
com o desenvolvimento e aprofundamento da democracia, eixo de referência
prioritária do “projecto europeu”? E, ainda, perante estas dúvidas e incertezas
valerá a pena recuperar tal projecto?
Não conseguiremos livrar-nos
de dúvidas como estas nos horizontes mais próximos. Mas, por outro lado, elas
são exemplo de um processo geral de questionamento, autoscopia e reflexão
interna que a U.E. deveria ter como prioridade desencadear num contexto crítico
como o que vivemos. Se quererá fazê-lo ou se, uma vez mais, optará por tentar passar
por cima dos problemas sem os analisar a fundo, sem os debater critica e
democraticamente da forma mais ampla possível e sem os habituais critérios nada
democráticos de representatividade, é toda uma outra questão. A Europa depende
agora da realização urgente de um tal debate ou o projecto integracionista
voltar-se-á contra si próprio até soçobrar por completo.
O que significa que haverá
que pôr em prática todo um programa de revisão global apreendido e
protagonizado pela cidadania europeia nas suas mais diversas expressões,
abrangendo a política, a economia, a história, a cultura e os valores, a
discussão e a desconstrução do pensamento oficial e dos interesses instalados
subjacentes; e, muito especialmente, que a agenda próxima exige o estudo e
análise aprofundados e sistemáticos das condições económicas, políticas e
sociais das alternativas existentes a fim de que as mesmas possam vir a ser
tanto quanto possível amplamente consensualizadas. Estudo e análise estes que,
a serem empreendidos, significam trabalho de gerações. Mas que urge começar
desde já.
A título ilustrativo de um
possível caderno de encargos de curto prazo de uma tal démarche, identificamos alguns exemplos do que têm vindo a ser
consideradas linhas fundamentais de um tal debate, essencialmente enquanto
preocupação de autores de referência mas ainda raramente enquanto objecto de reflexão
sistemática a nível europeu:
- Democracia, representatividade e voz –
não pode a U.E. subsistir sem que os parlamentos e outras instâncias de
representação democrática nacional dos EEMM continuem a não ter poder de
decisão face a Bruxelas e suas imposições; não podem os cidadãos europeus
continuar a não ter capacidade alguma de se fazerem ouvir perante a carga
trituradora do centralismo europeu. A este respeito pode ler-se, por exemplo, Wallace,
H. e outros (2015, 7ª. ed.) Policy-Making in the European Union. UK Oxford University Press, com cópia
disponível em pdf em: http://ippra.com/attachments/article/355/Policy%20making%20in%20the%20EMU.pdf;
- Reforço do processo de integração,
essencialmente a nível económico e monetário, ou admissão da possibilidade de
funcionamento a diferentes ritmos e com distintos níveis de compromisso? O Brexit parece demonstrar que a segunda
opção não se afigura muito viável; mas se outros êxodos se seguirem, não será
de repensar a fundo esta questão? A colectânea organizada por M. Fichera e S.
Hänninen (2016, Routledge) sob o tema Polity
and Crisis: Reflections on the European Odissey abarca interessantes
contributos sobre esta problemática, como pode ler-se em alguns dos excertos
disponíveis on line no site da Google books (https://books.google.pt/);
- A
reforma (possível) do modelo económico europeu, constatada a sua falha
retumbante na promoção de um espaço de justiça económica e social. Não pode a
U.E. sobreviver à custa do agravamento das desigualdades entre e dentro dos
diversos EEMM; não pode a troïka insistir em impor a austeridade às economias “incumpridoras”
quando conhece perfeitamente o contributo de tais políticas para a anemia do
crescimento económico global. Não é, ainda, admissível que se tente forçar a “convergência”
das economias mais débeis à custa de processos drásticos de desvalorização
interna via redução sistemática dos salários reais, à revelia das instituições
nacionais de contratação colectiva e, até, dos avisos e críticas de
organizações internacionais como a OIT. Entre muitos outros contributos sobre
este tema, podemos apontar o artigo de Ch. Hermann de Abril de 2014, na revista
Competition and Change, acessível aqui.
Muito mais se poderia alongar a lista de temáticas que é
urgente debater, o que naturalmente aqui não se fará. Os exemplos avançados são
quanto baste para justificar a urgência de um profundo debate europeu sobre as
múltiplas causas da crise actual. “Esta” Europa tem de se questionar alguma vez
sobre as razões últimas dos processos de integração que acolhe, bem como sobre
as potencialidades e limitações dos mesmos face aos desafios em presença.
Estamos convictos de que o timing para
o fazer é agora ou não se virá a justificá-lo mais tarde.
[1] Como
pode constatar-se pela leitura de vários livros deste autor como, por exemplo, Era dos Extremos- o breve século XX, 1914-1991, ed. 1995, Lisboa: Companhia das Letras.
Disponível em pdf em: https://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/hobsbawm-a-era-dos-extremos.pdf
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