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30 julho 2014

Reformas das pensões:
a desconstrução do modelo salarial da repartição

Síntese da intervenção feita pela Prof.ª Clara Murteira, numa Sessão do Grupo Economia e Sociedade sobre a temática da reforma do sistema de pensões, que tem vindo a ser implementada no quadro de transformação (destruição) do Estado Social.

Reformas das pensões:

a desconstrução do modelo salarial da repartição 

- Clara Murteira

O discurso sobre as reformas das pensões de instituições internacionais como o Banco Mundial, a OCDE, o FMI, etc. mudou. Estas instituições deixaram de exercer pressão sobre os governos para substituírem, total ou parcialmente, os esquemas públicos de repartição por esquemas privados de capitalização com contas individuais de poupança-reforma. O Banco Mundial, líder da campanha transnacional favorável à privatização das pensões, desde cedo[i] reconheceu que os custos de transição representam o principal obstáculo à concretização do modelo que propusera em 1994. O facto é que privatizar pensões exige que os governos assumam elevados níveis de endividamento para garantir o pagamento das pensões às gerações que já adquiriram direitos, pois não é possível impor a uma geração um duplo encargo contributivo (para financiar as pensões dos actuais reformados e para acumular fundos na suas contas individuais). Em alternativa, o Banco Mundial propõe a prossecução das reformas paramétricas dos esquemas públicos de repartição (as que reduzem pensões mediante ajustamentos dos parâmetros da fórmula de cálculo) ou a adopção do modelo de contas individuais virtuais (modelo sueco). Ou seja, já não propõe a substituição da repartição por capitalização mas a substituição do modelo original da repartição por outros modelos de repartição. Esses outros modelos inscrevem a repartição na lógica da capitalização, criando a “ilusão da poupança”[ii].

Nos anos sessenta e setenta, muitos países desenvolvidos da Europa e do resto do mundo mudaram radicalmente os objectivos das políticas de pensões com o propósito de elevar os níveis de vida dos pensionistas: transitou-se da garantia de níveis de vida mínimos para a salvaguarda dos níveis de vida atingidos. Muitos países que tinham instituído esquemas de repartição desenvolveram o modelo de modo a assegurar a manutenção dos níveis de vida: a remuneração de referência para o cálculo da pensão passou a relacionar-se com os salários dos últimos anos de actividade e assim garantir uma taxa de substituição elevada; o método de indexação passou a assegurar uma progressão paralela das pensões e dos salários; as receitas do sistema passaram a aumentar com o aumento das necessidades de financiamento. O modelo original da repartição é de base salarial: o salário é o termo de referência para a definição da pensão; o objectivo a atingir exprime-se através da taxa de substituição (relação entre a primeira pensão e o último salário); a pensão pode ser concebida como “salário continuado”[iii]. O ideal de justiça implícito é a paridade entre os níveis de vida dos pensionistas e os da população activa.

As novas versões da repartição, hoje promovidas pelo Banco Mundial, pela União Europeia etc., obedecem a uma lógica diametralmente oposta, pois têm como referência o modo de funcionamento dos planos de poupança‑reforma. Essas versões mantêm um laço forte entre contribuições e pensões, a nível individual ou de geração. Os esquemas estritamente contributivos, actuarialmente neutros, de contas individuais virtuais, etc. são exemplos radicais da organização dos esquemas de repartição segundo a lógica da poupança-reforma. As contribuições passam a ser representadas como se fossem “poupança” e as pensões como a contrapartida das contribuições, ou seja, como “rendimento individual diferido”[iv]. O termo de referência para a definição da pensão passa a ser a soma das contribuições passadas. O ideal de justiça implícito é que cada um receba na proporção da sua contribuição passada.

O modelo sueco, considerado de referência pelo Banco Mundial, a União Europeia, etc., é um exemplo expressivo desta reorientação radical. O modelo mantém o financiamento por repartição mas passa a espelhar o modo de funcionamento dos planos de capitalização com contas individuais de poupança-reforma. Como o esquema é de contribuições definidas (e não de prestações definidas, como o original), o valor da pensão deixa de ter relação com os salários anteriores e deixa mesmo de ser definido a priori. O objectivo já não é assegurar uma taxa de substituição do salário. A pensão passa a relacionar-se com as contribuições passadas, a esperança de vida restante e uma “taxa de juro virtual” das contribuições estabelecida pelo governo. O valor das contribuições passa a ser registado em contas individuais, dando a sensação de que cada um tem uma conta de poupança. De facto, não há dinheiro nas contas – são virtuais – apenas um registo contabilístico. Em cada período, as contribuições continuam a ser utilizadas de imediato para pagar as pensões aos reformados, mas cria-se a ilusão de estar a contribuir para financiar a própria pensão.

Também as reformas paramétricas dos sistemas públicos de pensões introduzidas desde 2000 em diversos países da União Europeia, incluindo Portugal, têm contribuído para alterar o modo de organização dos esquemas públicos de repartição aproximando-os do modo de funcionamento dos planos de poupança-reforma: as pensões passam a ter uma relação mais estreita com as contribuições individuais passadas; a referência salarial tende a desaparecer.

Em Portugal, o sistema público de pensões afastou-se significativamente do modelo original com a reforma das pensões de 2007. A ruptura operada foi radical, apesar de não ter sido evidente, porque os efeitos não foram abruptos.

· Os níveis das pensões sofreram cortes drásticos, apesar de graduais.

· Os princípios organizadores do sistema aproximaram-se dos que orientam os planos de poupança-reforma: estreitou-se o laço entre contribuições e prestações, pois as pensões distanciaram-se das remunerações dos últimos anos de actividade passando a depender das remunerações de toda a carreira contributiva e assim a ter uma relação mais próxima com as contribuições passadas; as pensões passaram a depender também da evolução da esperança de vida.

A referência salarial da pensão vai desaparecendo, à medida que enfraquece o laço entre pensões e salários: no momento da passagem à reforma, as taxas de substituição do salário reduzem-se substancialmente; no período subsequente, continua a aumentar a divergência entre pensões e salários pois o método de indexação deixa de garantir a manutenção do valor real de todas as pensões; os níveis mínimos de pensões são desligados do salário mínimo nacional; o direito a uma pensão mínima do regime contributivo foi mesmo questionado enquanto direito fundamentado no trabalho, como atesta o diploma legal que instituiu o “complemento solidário para idosos” ao sugerir que esse direito passe a ser garantido em situação de necessidade.

· Com o desligamento da pensão em relação aos salários dos últimos anos de actividade abandona-se, sem explicitar, o conceito de pensão como “salário continuado” e, dessa forma, o objectivo da manutenção do nível de vida na reforma.

Na impossibilidade de concretizar no presente a privatização das pensões (em sentido estrito), por falta de contexto favorável, as instituições internacionais que antes promoveram a privatização das pensões propõem hoje a difusão das outras versões da repartição. Alguns autores consideram que o intuito é mudar mentalidades para familiarizar as pessoas com os princípios e as normas que são próprios dos planos de poupança-reforma, abrindo assim o caminho para uma futura privatização. Além disso, as duas estratégias de reforma referidas (reformas paramétricas e transição para o modelo de contas virtuais) favorecem o desenvolvimento da provisão privada porque envolvem reduções dos níveis das pensões, conduzindo as pessoas a procurar espontaneamente fontes adicionais de rendimento na reforma.



[i] World Bank, “Notional Accounts: Notional defined contribution plans as a pension reform strategy”, World Bank Pension Reform Primer, 2001.

[ii] Num esquema de capitalização com contas individuais de poupança-reforma, cada trabalhador contribui para si mesmo, financiando a sua pensão através da acumulação de fundos em contas individuais. Um esquema de repartição alicerça-se num princípio de solidariedade: os trabalhadores contribuem, não para financiar a sua pensão, mas para financiar a pensão dos actuais reformados, confiando que futuros trabalhadores irão contribuir para financiar a sua pensão. As novas versões da repartição criam a ilusão da poupança, a ilusão de estar a realizar transferências de rendimento de cada indivíduo para si mesmo entre o período activo e o da reforma.

[iii] Expressão de Bernard Friot.


[iv] Idem.

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