26 julho 2014

A reestruturação da dívida é alternativa: onde está o risco moral?

1) Entre os acontecimentos que, ultimamente, mais têm merecido a atenção dos media, sobressai a perigosa situação financeira do Grupo Espírito Santo, cujo impacto sobre o BES e a economia nacional permanece ainda muito obscuro.

Desejavelmente, os reguladores irão actuar no sentido de minimizar os danos, mas, mais uma vez, fica patente a incapacidade, ou o pouco empenhamento, para prevenir ocorrências tão graves como aquela.

2) Uma questão que se coloca é a do chamado “risco moral”, isto é, o incentivo ao mau comportamento quando se sabe que, na hora das dificuldades em satisfazer as dívidas, alguém irá oferecer os meios para a reestruturação financeira.

Esse “alguém”, no caso do sistema financeiro, tem sido o apoio dos governos, com o sacrifício das funcões do Estado Social e do bem-estar das populações e colocando entraves sérios ao desenvolvimento socioeconómico a prazo.

Na Europa, uma União Bancária rapidamente instituída teria evitado o escalar da crise das dívidas soberanas até às proporções que ela assumiu, sendo certo
que o elevado endividamento público que se vem registando em muitos países da zona euro é, em grande parte, fruto do apoio oferecido ao sistema bancário europeu.

3) O que é claro é que o argumento do “risco moral” para não reestruturar dívidas excessivas tem sido usado quando está em causa o endividamento do Estado, levando à imposição de políticas de austeridade e a condicionalidades muito exigentes para acesso ao financiamento.

A assimetria do poder detido pelos credores das dívidas soberanas explica que para estas não exista um mecanismo de reestruturação de âmbito internacional, com cláusulas que previnam situações de privilégio abusivo de alguns credores, como ocorreu recentemente na Argentina, na sequência de uma decisão do Supremo Tribunal dos E.U.A.

Esse mesmo poder quase absoluto dos credores sustenta a tese de que não há alternativa à austeridade.

4) Como salienta Nouriel Roubini, no artigo “Gouging the Gaúchos”, em Project Syndicate, 1 de Julho, não existindo um regime formal de insolvência para os governos, estes têm de se apoiar nos mecanismos de mercado para resolver os problemas do excesso de dívida, o que permite que alguns credores não sigam a posição da maioria que aceitou a reestruturação e exijam ser plenamente reembolsados (alguns autores chamam “abutres” a esta categoria de credores).

A reestruturação das dívidas soberanas, caso a caso, com base em mecanismos de mercado, é pois uma solução gravosa que se poderia evitar através de um acordo sobre um regime formal de insolvência dos governos, tal como defendeu o FMI em 2002, através de Anne Krueger, à data Directora dessa instituição, esclarece Roubini.

Afinal, esta é a solução corrente para as empresas que podem desencadear um processo de declaração de insolvência supervisionado pelos tribunais e continuar a sua actividade, enquanto desenvolvem com os credores um plano de reestruturação das suas dívidas excessivas.

5) Face ao elevado peso das dívidas públicas em relação ao PIB, em muitos países europeus, estas questões não podem deixar de estar na agenda das instâncias internacionais e, muito em particular, das da zona euro, em que se continua a prever um crescimento muito baixo do PIB.

Foi demasiado longo o tempo gasto para que deixasse de ser tabú a necessidade de reestruturar as dívidas soberanas na Europa. Entre nós, o Manifesto dos 74 deu início a um debate mais visível e alargado acerca das alternativas e das condições que podem acompanhar uma reestruturação da nossa dívida, a qual continua a aumentar e não será travada, seguramente, com mais austeridade.

6) Começam a ser conhecidas propostas interessantes para resolver o problema da dívida na Europa: o chamado Plano PADRE ou MADRE, sobre o qual Manuel Brandão Alves já escreveu neste blog, em 25 de Junho, é um exemplo do que poderia ser feito se fosse assumida uma solução colectiva e, neste caso, sem o tal “risco moral”, pois os custos seriam assumidos pelos actuais detentores da dívida.

Outras propostas têm sido apresentadas, por parte de quem tem um conhecimento aprofundado dos problemas financeiros da zona euro. Todas deveriam merecer a atenção dos que têm responsabilidade na preparação das decisões sobre a reestruturação da nossa dívida, com vista a um processo negocial a empreender no espaço europeu.

Um contributo muito importante é o oferecido por João Cravinho, no seu livro intitulado “A Dívida Pública Portuguesa”, edição Lua de Papel, 2014, o qual, em linguagem acessível, torna bem clara a urgente necessidade de reestruturação da dívida.

Para além disso, é de louvar a inclusão neste livro dos textos de 3 propostas concretas de autores estrangeiros:
- O citado Plano PADRE;
- Proposta Modesta Para Resolver a Crise da Zona Euro, de James K. Galbraith e outros;
- Relatório Final de Grupo de Peritos sobre um Fundo para Amortização da Dívida e Eurobills, estabelecido pela Comissão Europeia e presidido por Gertrude Tumpel-Gugerell.

O argumento do “risco moral” não pode minar os esforços para encontrar uma solução colectiva que resolva o problema das dívidas soberanas e ponha fim à ficção da austeridade para todo o sempre.

1 comentário:

  1. Muito obrigada por este seu "post", Isabel Roque de Oliveira. Depois de várias abordagens parcelares a esta urgentíssima questão, fazia falta um enquadramento analítico de conjunto, como aquele que desenha.

    Margarida Chagas Lopes

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