25 junho 2014

O que pode acontecer quando um “PADRE” e uma “MADRE” se encontram numa encruzilhada?


Não, não, nada do que possa estar a pensar!
Aquilo de que vos quero falar é de um milagre.
Um PADRE e uma MADRE encontraram-se numa encruzilhada e perante a complexidade e gravidade da situação, com que se depararam, pediram, aos céus, a realização de um milagre. O milagre é tão extraordinário que poderá ter como consequência a anulação de 50% da dívida externa dos países intervencionados pela troica.
Não haja dúvidas, um milagre para o nosso tempo!
Mas será o milagre verdadeiro, ou não será, antes, mais um embuste bem montado? É que, como os media nos têm relatado, ele há PADRES e MADRES para tudo! Mais vale avaliar bem antes de arrematar.
Comecemos por de onde vêm o PADRE e a MADRE e, depois, onde é que se encontra a encruzilhada. O currículo dos intervenientes pode dizer-nos alguma coisa sobre a credibilidade que lhe possamos atribuir.
Bom, o PADRE, surpresa das surpresas, não é mais do que um Plano “Politically Acceptable Debt Reestructuring in the Euro Zone” (Plano de Reestruturação da Dívida, na Zona Euro, Politicamente Aceitável). Os seus progenitores são os Srs. Pierre Pâris e Charles Wyplosz. Ao procurar saber de onde vem a MADRE descobrimos que tem a mesmo progenitura que o PADRE. O PADRE e a MADRE são, por isso, irmãos. A MADRE tem como característica genética o ser um “MutualAgreement for Public Debt Restructuring in the Eurozone” (Acordo Mútuo para a Reestruturação da Dívida Pública na Zona Euro).
E onde é que se encontra a encruzilhada? Pois, a encruzilhada está situada no grande quebra-cabeças que é o aparente poço sem fundo da dívida externa dos países intervencionados, ou em vias de o poderem vir a ser. Poço sem fundo porque, apesar de todas as medidas austeritárias que já foram adotadas e que se previa poderem matar o bicho que mora no poço, o que vemos é que ele continua a crescer. Em Portugal era de cerca de 94% do PIB no início do programa de intervenção e quando este acabou, em Abril passado, já ultrapassava os 130%.
Afinal, o que é que não funcionou, para que as medidas adotadas não tivessem produzido os resultados esperados? A terapêutica não é adequada? Foi mal administrada? Ou mudaram as circunstâncias em que se considerava que ela seria eficiente? Porventura, será necessário dizer “sim” a todas as questões colocadas.
Regressemos ao PADRE e à MADRE. Em primeiro lugar o PADRE. O que os nossos Pierre Pâris e Charles Wyplosz vêm propor é, no essencial, que o Banco Central Europeu (BCE) compre metade da dívida existente, a transforme em obrigações perpétuas sem juros sendo, depois, ressarcido, nessa compra, pelos direitos de senhoriagem, sobre o BCE, a que os países têm direito.
Vamos lá traduzir isto em miúdos. Em primeiro lugar, o que são os direitos de senhoriagem? Quando um país tem a sua moeda nacional e o seu Banco Central emite moeda, o Banco obtém um lucro igual à diferença entre o valor nominal da moeda e os custos em que o Banco tem que incorrer para produzir, distribuir e recolher a moeda que deve ser substituída. Só que o Banco Central emite moeda a pedido do Governo e, por isso, os lucros obtidos (direito de senhoriagem) devem ser devolvidos ao Governo.
O mesmo se passa com o Banco Central Europeu que, quando emite moeda, o faz em nome do Estados membros da zona euro. Obtém lucros que, no caso do mecanismo do PADRE, em vez de distribuir aos estados membros, na percentagem a que têm direito, os passaria a guardar, a título de amortização das obrigações emitidas. O fato de os juros serem nulos só causa perplexidade a quem pensar que o BCE deve realizar lucros à custa dos Estados membros (para além dos que forem necessários para compensar os seus custos de funcionamento). Para que o BCE fique totalmente ressarcido pode ser necessário que o período de amortização se estenda por muitas décadas e não há nenhum mal nisso.
As críticas a esta terapêutica são de ordem essencialmente política, e decorrem do facto de haver receio que a medida adotada possa provocar tensões inflacionistas (pecado absolutamente mortal numa Europa germanalizada), uma vez que ela equivale a colocar mais dinheiro em circulação. Para além disso, invoca-se que a medida pode levar os países a descurarem a sua capacidade de endividamento, permitindo que a dívida volte a subir. O que os pais da criança nos dizem é que haverá sempre um instrumento de controlo destes desvios, que consiste em voltar a converter a dívida perpétua em dívida normal.
Estes argumentos têm sido de pouco convencimento para quem entende que o status quo atual é mais seguro para devedores e credores. Para rodear as objeções que têm vindo a ser realizadas e os receios de que algum vírus pretensamente inflacionário se possa propagar ao BCE (por ex. o financiamento dos estados nacionais) os progenitores do PADRE resolveram não o deixar sozinho e deram-lhe uma MADRE que tem como vocação criar uma Agência que passaria receber os lucros do BCE, anteriormente referidos, até que a amortização das obrigações tenha sido totalmente realizada.
Equivale isto a uma reestruturação da dívida? Nem mais nem menos: há um aumento do prazo de amortização e ninguém vai perder nada com isso. Com este esquema não há dívida que seja eliminada e os juros continuarão a ser pagos aos credores.
Milagre? Eu diria, antes, “ovo de Colombo”, porque se pode perguntar porque é que ninguém se tinha, ainda, lembrado de tal coisa. E com isto ficará tudo resolvido? Infelizmente, receio bem que não. A questão importante, que deve ser colocada é a de saber quais são as verdadeiras razões que têm levado os Estados a endividarem-se. Se o principal fator de endividamento fosse o vício de “vivermos acima das nossas possibilidades”, talvez a coisa se resolvesse, mas a verdade é que não é.
Com efeito, muitos outros fatores devem ser enunciados como produtores de dívida: estrutura produtiva esclerosada, recursos humanos pouco qualificados, capacidades de gestão bloqueadas, Estado ineficiente, aparelho judicial moroso e inadaptado e, mais importante que tudo, uma moeda única com paridades que têm como única vocação (expressa, ou não) debilitar e extrair recursos dos países do Euro para os quais a moeda se encontra sobrevalorizada.
Que fazer? Quase que se poderia dizer que é necessário disparar em todas as direções: reestruturar a dívida, qualificar o país, modificar as regras de funcionamento do euro e de constrangimento orçamental e, quem sabe, ter até de sair do euro, se os parceiros da União Monetária impedirem que as medidas alternativas produzam os efeitos adequados. Nenhuma das vias enunciadas deverá ser considerada como exclusiva.
É um programa pesado e uma atitude arriscada? Pois é! Mas mais pesado é o programa que nos está a levar para a destruição do país, com a submissão a mecanismos que em lugar de eliminarem a dívida, criam condições para que ela se multiplique e perpetue.
Não é caminho que possamos fazer sozinhos e daí a estupidez da fábula do bom aluno (nós) que não é igual aos outros meninos da turma (a Grécia, por ex.). Com efeito, convencer a comunidade germanófila e associados da bondade das nossas pretensões não é tarefa fácil, ainda que lhe possamos mostrar que, a longo prazo, este caminho é, também, do seu interesse. Por isso, agir em conjunto é, certamente, uma melhor estratégia do que a estratégia do bom aluno.
Permito-me, aqui chamar a atenção dos debates promovidos pelo IDEFF, que, a este propósito, têm vindo a ter lugar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, por iniciativa do Prof. Paz Ferreira (ver aqui e ali).

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