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19 maio 2014

A propósito de reformas estruturais e de estratégias de médio prazo: o conteúdo e as incoerências

Nas últimas semanas, e em particular na última, falou-se amplamente de “reformas estruturais” e de uma “estratégia de medio prazo” Falou-se muito mas, como dizia um amigo meu, disse-se pouco. Vou procurar explicar porquê.
As reformas estruturais que, periodicamente, têm vindo a aparecer à boca de cena, são as que as autoridades portuguesas e os seus aliados da troica vêm designando como indispensáveis para que a recuperação da economia portuguesa possa ter lugar: privatizações, diminuição do peso do Estado Social, redução da intervenção do Estado, diminuição dos salários, das pensões, etc. Quanto aos 1% dos portugueses que detêm 10% dos rendimentos entendeu-se não deverem fazer parte da reforma.
Sobre a estratégia de médio prazo é algo de que só se ouviu falar a propósito dos festejos preparados por ocasião da "partida" da troica. Para a sua aprovação o Governo dedicou-lhe, até, no passado dia 17, um Conselho de Ministros Extraordinário.
Vejamos o que está em causa. Começo por precisar alguma terminologia que tem vindo a ser utilizada, mas fora do contexto em que o deveria ser. Referi-mo aos conceitos de estrutura e de estratégia.
Falamos de estrutura a propósito da organização interna de um conjunto (sistema), que identifica o peso relativo de cada uma das suas componentes e a forma como se relacionam entre si. Pode-se alterar a estrutura desse conjunto, quer modificando o peso relativo das componentes (incluindo a eliminação de uma ou várias), quer alterando os circuitos de dependências e interdependências pré-existentes, ou ambas. Quando tal acontece diz-se que se verifica uma reforma estrutural, ou uma reestruturação do sistema.
O conceito de estratégia tem um conteúdo mais ambíguo, porque tem sido utilizado em duas aceções diferentes que, nem por isso, em cada uma delas, deixa de ser preciso. O conceito de estratégia tem origem na “arte da guerra” e significa a forma como se organizam e combinam os meios para atingir os objetivos (lembram-se do quadrado de Aljubarrota?).
Mais recentemente, o termo de estratégia passou a ser usado no âmbito da gestão de empresas, para significar uma perspetiva de médio e longo prazo. É já depois dos anos 80 que a ideologia que considera que o Estado pode ser governado do mesmo modo que se gere uma empresa, importou para o domínio da coisa pública este conceito de estratégia.
Só que, ao fazê-lo, misturou de forma incompreensível a ideia de “visão” com a de “programa de médio ou longo prazo” deixando, de ter visão, de ter programa de médio ou longo prazo e de combinar de forma eficiente os meios para alcançar os objetivos. Isto é, lançou-se uma bomba de estilhaços e o que resta, agora, é muito pouco. Fala-se, fala-se, fala-se, mas o que lá está dentro é muito pouco ou, então, não é pouco, mas está longe da desejada configuração original do sistema.
Voltemos à questão das reformas estruturais. Vale a pena chamar a atenção para a circunstância de que aquilo a que o Governo tem vindo a chamar reformas estruturais está longe do conceito de reforma estrutural acima enunciado. De facto, o que está em causa não é a alteração dos pesos relativos das componentes do Estado, ou do relacionamento entre elas. Aquilo a que temos vindo a assistir é à destruição, pausada, lenta, mas determinada, do Estado, nas componentes e funções que desde há muitas décadas lhe estão atribuídas. É assim, com as privatizações, com a eliminação das funções do Estado no domínio da saúde, da educação, da justiça, da regulação salarial, com a abdicação do objetivo de manutenção, ou construção, do Estado eficiente, etc.
Não se trata de reformas estruturais, mas de um programa de destruição do Estado atual para o substituir por um outro Estado em que desaparecem as suas funções de inclusão social e de regulação da repartição de rendimentos. Em lugar de um Estado promotor de equidade, vemos configurar-se um Estado facilitador da recomposição do capital patrimonial e da concentração de riqueza (ver, por ex. Piketty). É para isto que nos conduzem as reformas estruturais do Governo!
E quanto à estratégia de reforma de médio prazo? O Governo chamou-lhe: “Caminho para o Crescimento”. Raramente se ouviu falar de tal coisa durante os 3 anos (formais) do Programa de Ajustamento. Será que este intitulado significa que, finalmente, o Governo compreendeu que nenhuma recuperação é sustentadamente possível sem crescimento? Até aqui o que víamos firmemente afirmado era que a recuperação só seria possível pela via do empobrecimento, mas ignorando que o empobrecimento é um processo cumulativo e que chegará o dia em que os próprios credores já só encontrarão pobreza para se alimentar.
Tenho muitas dúvidas sobre a conversão do Governo e da troica à religião do crescimento, ao “Caminho para o Crescimento” como uma estratégia de reforma a médio prazo. Se é uma estratégia, poderíamos perguntar-nos se quem nos administra tem uma “visão” para o futuro. É verdade que a estratégia tem um horizonte temporal, o de 2018 mas, vai-se a ver, e aquilo que se apresenta como um agregador de reformas, umas já feitas, outras em curso e ainda outras a realizar nos próximos anos, só pretende iluminar o caminho até 2015. A razão é simples, dizem os seus responsáveis: este Governo não sabe se estará lá depois de 2015!
Fantástico! Onde está a coerência de uma visão que se apresenta como iluminando até 2018? Mesmo até 2015, como se articulam as suas medidas? Quais são os resultados esperados?
Um plano de médio prazo, uma estratégia para 4 anos! De fato não sabem do que falam. Talvez não nos devêssemos surpreender de que tal aconteça, quando sabemos que nenhum exercício sério de programação se fez neste país, desde os trabalhos que foram realizados, em 1975, dando origem ao que ficou designado por Plano Melo Antunes (Programa de Acção Política Económica e Social de Transição) e, em 1977, de que resultou o, também, chamado Plano Manuela Silva (Plano de Médio Prazo 1977-80). Desde então entendeu-se, generalizadamente, que os Planos se eram precisos era nas empresas, porque no Estado só serviriam como instrumento tolhedor de movimentos e de iniciativas. Em consequência, as próprias estruturas técnicas que poderiam ajudar a preparar os planos foram destruídas.
A verdade é que a própria Constituição da República obriga à existência de um Plano de Médio Prazo. De tudo isso restaram, apenas as “Grande Opções do Plano”, mas ficaram, apenas, no papel que acompanha o Orçamento, porque o conteúdo compromissório que se lhe deveria seguir, sempre se tem esfumado.
 

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