29 junho 2013

Manuela Silva é Doutora Honoris Causa
(por causa da honra)

Realizou-se, no passado dia 21 de Junho, a sessão solene de atribuição do grau de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Técnica de Lisboa (através do ISEG), à nossa amiga e companheira, Maria Manuela Silva. Sobre quem e o que ela é não direi uma palavra, porque isso só serviria para desmerecer todo o respeito que por ela possuímos.

Quero, no entanto chamar a atenção para o notável discurso que na ocasião proferiu, que desejo que seja lido e refletido por todos. O texto do discurso pode ser encontrado aqui.

Para os que não puderem ler a versão integral aqui deixo alguns extratos do que considero mais relevante.

O tema:

“A crise da ciência económica e a legitimidade e a urgência de ultrapassar a fronteira de um pensamento único, na investigação e no ensino da Economia.”

Sobre o lugar da ciência económica:
 
“Foi a minha ligação ao conhecimento da economia real que muito contribuiu para que tivesse mantido, ao longo da minha carreira docente, uma visão da Ciência Económica necessariamente ligada à Ética e à Política e não desvinculada da situação concreta das pessoas e dos povos, do modo de produção e especialização produtiva, dos níveis e padrões de consumo em relação com a qualidade de vida, da repartição do rendimento e da riqueza e a sua desigualdade, do papel do Estado na promoção do desenvolvimento e na regulação do mercado e correcção das respectivas disfuncionalidades.
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Incluo-me no grupo dos cientistas sociais que reconhecem que, muito justamente, a Ciência Económica está sob suspeita, tanto por parte de alguns dos seus artífices, como pelo lado de algumas correntes de opinião pública e decisores políticos.
O que está em causa não é o pensamento económico em si o qual se considera relevante e indispensável para a melhor compreensão da realidade societal e do lugar que nela ocupa a organização e o funcionamento da respectiva economia; tão pouco se põe em dúvida o papel coadjuvante que a Ciência Económica pode ter na definição de estratégias e medidas de política que viabilizem e promovam um desenvolvimento sustentável ao serviço do bem-estar colectivo e da qualidade de vida das pessoas, da coesão e da paz social, finalidades indissociáveis de uma democracia autêntica.
O que está em causa é que a Ciência Económica dominante se deixou capturar pelos interesses do capital financeiro e vem harmonizando as suas lógicas de construção científica com esses interesses, concentrando aí o seu olhar e o aperfeiçoamento das suas ferramentas analíticas e, do mesmo passo, desviando-se de outras hermenêuticas que privilegiem, por exemplo, a satisfação das necessidades das pessoas e do emprego dos respectivos recursos individuais e colectivos, a prossecução de finalidades de bem-estar individual e social, a equidade no acesso e na repartição dos bens, os processos de um desenvolvimento sustentável.
Nesta deriva ideológica, que, nas três últimas décadas, se tem vindo a impor, incluindo no meio académico, sob a capa de um pensamento único com pretensa validação científica, sobressaem a lógica de um comportamento dito “racional” baseado no mero interesse individual egoísta, a exaltação do mercado como regulador único do conflito de interesses, a competitividade como motor de um crescimento económico ilimitado.
Num tal contexto, varrem-se para debaixo do tapete problemáticas essenciais, como, por exemplo, a intolerável pobreza de muitos no meio da abundância material e do progresso tecnológico hoje possível ou aceita-se, acriticamente, que o desemprego estrutural elevado figure nos modelos macroeconómicos como variável de ajustamento; subestimam-se as desigualdades crescentes entre estratos populacionais e entre diferentes territórios de par com a formação de fortunas avultadíssimas que se acumulam improdutivas e sem benefício colectivo; ignora-se como estas condicionam (ou, inclusive, determinam!) estilos perniciosos e predadores de padrões de consumo e propiciam um crescimento económico sem desenvolvimento sustentável.”

Sobre a crise:

“A propensão ideológica para a exaltação do mercado em detrimento do papel regulador do Estado deixou que a crise se fosse arrastando no tempo e se aprofundasse e assumisse gigantescas proporções económicas e sociais, uma crise que se tornou sistémica e, por isso, se mostra cada vez mais difícil de ultrapassar.”
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a austeridade tem acentuado a transferência de valor do sector real da economia para o sector financeiro, com consequências negativas na desaceleração do investimento produtivo e no emprego; o défice das contas públicas engrossado por efeito das avultadas transferências de receitas do Estado para o sector financeiro e outros sectores rentistas tem implicado um severo esforço fiscal sobre os contribuintes, trabalhadores e pensionistas, acompanhado de uma subtil e cada vez mais aprofundada redução do perímetro das funções do estado social com consequente degradação da qualidade da provisão pública de bens em domínios essenciais como sejam a saúde, a educação e a segurança social.
Sob a capa do argumento da necessidade de conter os gastos do Estado, tem-se assistido a uma progressiva atrofia do estado social e à descaracterização do mesmo no que respeita à universalidade dos direitos como base da sua respectiva sustentação.”
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“A Ciência Económica não é, seguramente, a única causa desta deriva que nos tem conduzido ao risco de um sério retrocesso civilizacional. Há, por certo, razões de ordem cultural, ética, institucional e política que concorrem para esta crise.”
 
Sobre a ciência económica, a ética e a cidadania:
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“Acima de tudo, reputo do maior interesse que a Ciência Económica se reconcilie com a Ética”
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“estar a assistir a um processo evitável de empobrecimento colectivo em bem-estar e qualidade de vida para a generalidade dos cidadãos e cidadãs de todas as idades, por constatar que para vastos sectores da população portuguesa se estão a atingir níveis inesperados de precariedade material e risco de pobreza; o desemprego assume, cada vez mais, carácter estrutural dentro do actual modelo económico e atinge, hoje, um número anormalmente elevado e crescente de pessoas e famílias inteiras, algumas das quais privadas de qualquer apoio social, esgotado que foi o período fixado para o subsídio de desemprego.
Vejo com apreensão que crescem as desigualdades na repartição do rendimento e da riqueza e acumulam-se no topo da pirâmide incalculáveis fortunas socialmente improdutivas,”
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Convém, porém, ter presente que, por detrás dos números, que as estatísticas revelam, estão pessoas de carne e osso.
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Há uma dívida social de que pouco se fala, mas que não cessa de crescer, enquanto os recursos disponíveis na economia são, em boa parte, aspirados pelos encargos com os juros pagos por dívidas aos credores.”

Sobre a missão da Universidade:

“Reconheço que não está nas atribuições da Universidade substituir-se aos responsáveis políticos, aos governos e demais órgãos de soberania, mas como parte integrante da sociedade civil, particularmente qualificada que é, deve assumir a responsabilidade de fazer ouvir a sua voz produzindo conhecimento e tornando-o disponível à comunidade.
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faço votos de que esta sessão pública seja um contributo positivo, ainda que modesto, para construir um futuro mais esperançoso, para os nossos concidadãos e concidadãs, na rota da prosperidade, da justiça, da liberdade, da democracia e da paz”.

2 comentários:

  1. Infelizmente não pude estar presente na cerimónia, mas a leitura deste discurso foi para mim uma lufada de ar fresco no panorama dominante, incluindo o universitário. Parabéns Drª Manuela Silva e bem haja pela sua lucidez e coragem!

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