Realizou-se, no passado dia 21 de Junho, a sessão
solene de atribuição do grau de Doutor
Honoris Causa, pela Universidade Técnica de Lisboa (através do ISEG), à
nossa amiga e companheira, Maria Manuela Silva. Sobre quem e o que ela é não
direi uma palavra, porque isso só serviria para desmerecer todo o respeito que
por ela possuímos.
Quero, no entanto chamar a atenção para o notável discurso que na ocasião proferiu, que desejo que seja lido e refletido por todos. O texto do discurso pode ser encontrado aqui.
Para os que não puderem ler a versão integral aqui deixo alguns extratos do que considero mais relevante.
O tema:
“A crise da ciência económica e a legitimidade
e a urgência de ultrapassar a fronteira de um pensamento único, na investigação
e no ensino da Economia.”
Sobre o lugar da ciência económica:
“Foi
a minha ligação ao conhecimento da economia real que muito contribuiu para que
tivesse mantido, ao longo da minha carreira docente, uma visão da Ciência Económica
necessariamente ligada à Ética e à Política e não desvinculada da situação
concreta das pessoas e dos povos, do modo de produção e especialização
produtiva, dos níveis e padrões de consumo em relação com a qualidade de vida,
da repartição do rendimento e da riqueza e a sua desigualdade, do papel do Estado
na promoção do desenvolvimento e na regulação do mercado e correcção das
respectivas disfuncionalidades.
. . .
Incluo-me
no grupo dos cientistas sociais que reconhecem que, muito justamente, a Ciência
Económica está sob suspeita, tanto por parte de alguns dos seus artífices, como
pelo lado de algumas correntes de opinião pública e decisores políticos.
O
que está em causa não é o pensamento económico em si o qual se considera
relevante e indispensável para a melhor compreensão da realidade societal e do
lugar que nela ocupa a organização e o funcionamento da respectiva economia; tão
pouco se põe em dúvida o papel coadjuvante que a Ciência Económica pode ter na
definição de estratégias e medidas de política que viabilizem e promovam um
desenvolvimento sustentável ao serviço do bem-estar colectivo e da qualidade de
vida das pessoas, da coesão e da paz social, finalidades indissociáveis de uma
democracia autêntica.
O
que está em causa é que a Ciência Económica dominante se deixou capturar pelos
interesses do capital financeiro e vem harmonizando as suas lógicas de
construção científica com esses interesses, concentrando aí o seu olhar e o
aperfeiçoamento das suas ferramentas analíticas e, do mesmo passo, desviando-se
de outras hermenêuticas que privilegiem, por exemplo, a satisfação das
necessidades das pessoas e do emprego dos respectivos recursos individuais e
colectivos, a prossecução de finalidades de bem-estar individual e social, a
equidade no acesso e na repartição dos bens, os processos de um desenvolvimento
sustentável.
Nesta
deriva ideológica, que, nas três últimas décadas, se tem vindo a impor, incluindo
no meio académico, sob a capa de um pensamento único com pretensa validação
científica, sobressaem a lógica de um comportamento dito “racional” baseado no mero
interesse individual egoísta, a exaltação do mercado como regulador único do
conflito de interesses, a competitividade como motor de um crescimento
económico ilimitado.
Num
tal contexto, varrem-se para debaixo do tapete problemáticas essenciais, como,
por exemplo, a intolerável pobreza de muitos no meio da abundância material e
do progresso tecnológico hoje possível ou aceita-se, acriticamente, que o
desemprego estrutural elevado figure nos modelos macroeconómicos como variável
de ajustamento; subestimam-se as desigualdades crescentes entre estratos
populacionais e entre diferentes territórios de par com a formação de fortunas
avultadíssimas que se acumulam improdutivas e sem benefício colectivo; ignora-se
como estas condicionam (ou, inclusive, determinam!) estilos perniciosos e
predadores de padrões de consumo e propiciam um crescimento económico sem
desenvolvimento sustentável.”
Sobre a crise:
“A
propensão ideológica para a exaltação do mercado em detrimento do papel
regulador do Estado deixou que a crise se fosse arrastando no tempo e se
aprofundasse e assumisse gigantescas proporções económicas e sociais, uma crise
que se tornou sistémica e, por isso, se mostra cada vez mais difícil de
ultrapassar.”
. . .
a
austeridade tem acentuado a transferência de valor do sector real da economia
para o sector financeiro, com consequências negativas na desaceleração do
investimento produtivo e no emprego; o défice das contas públicas engrossado por
efeito das avultadas transferências de receitas do Estado para o sector
financeiro e outros sectores rentistas tem implicado um severo esforço fiscal
sobre os contribuintes, trabalhadores e pensionistas, acompanhado de uma subtil
e cada vez mais aprofundada redução do perímetro das funções do estado social
com consequente degradação da qualidade da provisão pública de bens em domínios
essenciais como sejam a saúde, a educação e a segurança social.
Sob
a capa do argumento da necessidade de conter os gastos do Estado, tem-se
assistido a uma progressiva atrofia do estado social e à descaracterização do
mesmo no que respeita à universalidade dos direitos como base da sua respectiva
sustentação.”
. . .
“A
Ciência Económica não é, seguramente, a única causa desta deriva que nos tem
conduzido ao risco de um sério retrocesso civilizacional. Há, por certo, razões
de ordem cultural, ética, institucional e política que concorrem para esta
crise.”
Sobre a ciência económica, a ética e a cidadania:
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“Acima de tudo, reputo do maior interesse que a Ciência Económica se reconcilie com a Ética”
“Acima de tudo, reputo do maior interesse que a Ciência Económica se reconcilie com a Ética”
.
. .
“estar a assistir a um processo evitável de empobrecimento
colectivo em bem-estar e qualidade de vida para a generalidade dos cidadãos e
cidadãs de todas as idades, por constatar que para vastos sectores da população
portuguesa se estão a atingir níveis inesperados de precariedade material e
risco de pobreza; o desemprego assume, cada vez mais, carácter estrutural dentro
do actual modelo económico e atinge, hoje, um número anormalmente elevado e
crescente de pessoas e famílias inteiras, algumas das quais privadas de
qualquer apoio social, esgotado que foi o período fixado para o subsídio de
desemprego.
Vejo
com apreensão que crescem as desigualdades na repartição do rendimento e da
riqueza e acumulam-se no topo da pirâmide incalculáveis fortunas socialmente improdutivas,”
. . .
Convém,
porém, ter presente que, por detrás dos números, que as estatísticas revelam, estão
pessoas de carne e osso.
. . .
Há
uma dívida social de que pouco se fala, mas que não cessa de crescer, enquanto
os recursos disponíveis na economia são, em boa parte, aspirados pelos encargos
com os juros pagos por dívidas aos credores.”
Sobre a missão da Universidade:
“Reconheço que não está nas atribuições da Universidade
substituir-se aos responsáveis políticos, aos governos e demais órgãos de
soberania, mas como parte integrante da sociedade civil, particularmente
qualificada que é, deve assumir a responsabilidade de fazer ouvir a sua voz
produzindo conhecimento e tornando-o disponível à comunidade.
. . .
faço votos de que esta sessão pública seja um contributo
positivo, ainda que modesto, para construir um futuro mais esperançoso, para os
nossos concidadãos e concidadãs, na rota da prosperidade, da justiça, da
liberdade, da democracia e da paz”.
Infelizmente não pude estar presente na cerimónia, mas a leitura deste discurso foi para mim uma lufada de ar fresco no panorama dominante, incluindo o universitário. Parabéns Drª Manuela Silva e bem haja pela sua lucidez e coragem!
ResponderEliminarParabéns à Profª Manuela Silva.
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