Disse o Ministro das Finanças, na semana passada, que há um enorme desvio entre o que os portugueses pensam que devem ter como funções sociais do Estado e o que aceitam pagar por elas.
Apetece acrescentar ao nome de Vítor Gaspar o epíteto ou cognome de senhor dos desvios. Primeiro, foi o “desvio colossal”, que desencadeou uma polémica que, enfim, já lá vai. Mas agora o senhor dos desvios não está a falar das contas públicas. Está a falar do povo português, culpado de um desvio que tem a ver com desejos. Não só o povo português terá andado a “viver acima das suas possibilidades”, como agora parece que é culpado de ter desejos a mais. Talvez também seja por isso que o senhor dos desvios lhe chamou “o melhor povo do mundo”…
Voltemos à frase do ministro na qual se refere a uma necessária maior disponibilidade dos portugueses para pagarem pelas funções sociais que entendem que o Estado deve ter (não pude deixar de lembrar aquele que uma vez gritou no parlamento: quem quer saúde pague-a!). Ora, acontece que muitos portugueses já pagaram (contribuíram com descontos) e, afinal, sobretudo por iniciativa do senhor dos desvios, desviaram-lhes o que estavam à espera de ver retribuído. Eu disse “desviaram-lhe”, há quem use também outros verbos… O que esperavam é que o Estado desempenhasse a função de segurança social, nomeadamente através de pensões e reformas. Mas muitos esperavam também alguma segurança quando perdem o emprego ou adoecem e cada vez são maiores a frustração e o sofrimento devidos aos cortes das prestações sociais, quando estas também resultam, em parte, de contribuições dos trabalhadores.
O contributo dos trabalhadores para o Estado Social é analisado num livro publicado há dias e que tem precisamente por título esta questão: Quem paga o Estado Social em Portugal? (Raquel Varela, coordenadora, Bertrand Editora, Lisboa, 2012). Segundo Raquel Varela, (JN, 12/10/2012), os autores usaram dados oficiais que têm a ver com impostos que recaem sobre o trabalho e, subtraindo a esse valor os gastos sociais do Estado, chegaram à conclusão de que, na esmagadora maioria dos casos, os trabalhadores pagam mais do que recebem do Estado, em diversos tipos de serviços. A participação do trabalho no PIB foi em 2011 de 50,2 % e em 2010 50,3% (tabela inserida na pag. 44), mas, segundo Eugénio Rosa, a percentagem dos rendimentos do trabalho e pensões no total de rendimento sujeito a IRS foi, em 2010 de 89,1%. Independentemente do tipo de proprietários das componentes do que se considere o capital, há que convir que a percentagem fica muito distante (injustamente!) da percentagem de participação no PIB.
Mas voltemos ao “que os portugueses pensam que devem ter como funções sociais do Estado”. Esses desejos dos portugueses não são uma fantasia nem extravagâncias. Correspondem ao que a Constituição da República Portuguesa estabelece, com vista a garantir a dignidade de vida dos cidadãos. Há, pois, que tudo fazer para não continuar a defraudá-los e a frustrá-los. Sobretudo quando, utilizando a linguagem do senhor dos desvios, há é um cada vez maior desvio entre o que estabelece a Constituição e as políticas e medidas dos governos, especialmente do actual, no sentido de reduzir as funções sociais do Estado.
Logo pouco depois do Ministro das Finanças ter falado do desvio, veio o Primeiro Ministro dar a entender que as funções sociais do Estado têm que ter outro entendimento certamente para se ajustarem (mais uma vez uso a linguagem preferida pelo senhor dos desvios) à lógica do Memorando de Entendimento, o qual, parece, ainda não estaria formulado em conformidade com tal lógica. Qual seria ela? Pois não será difícil de antever, dadas as alusões, já também de outros protagonistas, a revisões constitucionais.
Pois bem, os tais desejos dos portugueses sobre as funções sociais do Estado, correspondem a “compromissos assumidos com os cidadãos, também eles credores no que diz respeito ao direito à saúde, à educação, às prestações sociais, à justiça, ao emprego, à segurança social e ao desenvolvimento” e, “se podem ser importantes os compromissos legítimos assumidos com os credores”, aqueles assumidos com os cidadãos não são menos importantes e vinculativos, como se afirma no texto em que o GES – Grupo Economia e Sociedade, toma posição sobre a proposta de Orçamento do Estado para 2013. Aqui.
E, perante a Constituição que estabelece tais direitos, qual é o dever dos que têm maior responsabilidade na sua concretização?
Dirão: e os recursos? São, efectivamente, gerados na economia. Mas cá encontramos nós, pela terceira vez os desvios, não propriamente referidos na linguagem do senhor dos ditos, mas teimosamente presentes na realidade: donde vem a maior parte do desvio entre receitas esperadas e despesas efectuadas? A brutal quebra do consumo interno, o desemprego, a diminuição consequente de contribuições para a Segurança Social, o aumento de contribuições sociais, apesar dos inaceitáveis cortes a que têm sido sujeitas, tudo isto tem a ver com o tal desvio, e tudo isto tem a ver com a recessão para a qual a austeridade erigida em princípio máximo da política económica e financeira nacional e europeia empurra Portugal e outros países. E mais uma vez faço referência ao texto do GES que tem toda uma secção intitulada “Travar a recessão”.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Os comentários estão sujeitos a moderação.