Se as medidas recentemente anunciadas pelo Primeiro-Ministro e explanadas e desenvolvidas pelo Ministro das Finanças viessem a ser aprovadas e postas em prática (o que não creio venha a acontecer, dada a sua reprovação já tão claramente expressa por diferentes forças políticas e actores sociais a que irá acrescer, nos próximos dias, a contestação social na rua!), o País conheceria uma desvalorização salarial sem precedentes, por efeito conjugado dos cortes nos salários nominais da função pública e do sector privado, agravamento dos impostos sobre o trabalho, diminuição das transferências sociais, eliminação ou redução de algumas deduções fiscais, bem como viria a conhecer um retrocesso significativo do estado social, decorrente da redução dos anunciados gastos públicos com a saúde, a educação, a protecção social.
Acresce que, ao contrário do que se pretende fazer crer, não aumentaria a criação de novos empregos e agravar-se-ia a taxa de desemprego, já dramaticamente elevada.
Do mesmo modo, é justo temer sérias consequências do ponto de vista de um maior e mais generalizado empobrecimento, agravamento das desigualdades e perda de coesão social, mas também efeitos muito negativos, directos e indirectos, sobre a actividade económica.
É bom de ver que, num tal cenário, os objectivos visados de redução do défice das contas públicas e do endividamento tão pouco poderiam ser alcançados com estas medidas, já que a perda de poder aquisitivo conduz à diminuição da procura interna, ao decréscimo do investimento privado e do emprego, ao abaixamento da massa tributável e correspondentes menores receitas fiscais e não se espere que, de algum provável dinamismo do sector exportador, resulte compensação para a cadeia de efeitos recessivos atrás enunciada.
Se estes raciocínios parecem tão óbvios, cabe, então, perguntar: Que leva os governantes e quem os assessoria a insistirem neste pesado e obscuro receituário cuja iniquidade e ineficiência estão hoje amplamente demonstrados?
Penso que existem duas ordens de razões a que importa dar atenção.
A primeira prende-se com uma análise incorrecta da própria crise que aponta como suas causas: a falta de disciplina fiscal dos governos; a inevitável insustentabilidade do modelo de estado social no actual contexto da globalização; o viver acima das possibilidades.Tratam-se de três ideias preconceituosas, que passaram, acriticamente, para o senso comum, mas cuja validade não está empiricamente verificada. Trata-se, antes, de ideias feitas que pretendem esconder outras realidades, como sejam: a desregulação do mercado financeiro, a globalização sem regras, a avidez e a ganância dos especuladores e dos gestores sem escrúpulos, a grande e progressiva concentração do poder económico e financeiro, realidades estas que parecem intocáveis.
A segunda ordem de razões que leva os governantes a optarem pela dramática desvalorização salarial como medida de equilíbrio orçamental decorre de uma posição de classe que é, claramente, favorável ao capital e está mais comprometida com a manutenção de privilégios e rendas do que com a dignidade do trabalho, o bem-estar dos cidadãos e o bem comum, isto é, com os verdadeiros objectivos básicos de uma democracia real.
Se assim não fora, além de um maior empenhamento do governo nas políticas activas de desenvolvimento económico e bem-estar social, ter-se-iam encontrado outras alternativas para o equilíbrio das contas públicas. Por exemplo, estas: do lado do aumento das receitas públicas, eliminação de rendas, tributação de mais-valias nas transacções de capitais e imobiliário, fiscalidade progressiva, imposto sobre espectáculos e sobre bens sumptuários, etc..; pelo lado da redução das despesas, diminuição do número de assessores dos gabinetes ministeriais e seus respectivos vencimentos muito acima das tabelas de remuneração dos funcionários, eliminação de remunerações indirectas dos detentores de cargos políticos, redução significa dos gastos com o recurso ao outsourcing para tarefas que poderiam ser desempenhadas pela Administração Pública, revisão dos contratos das parcerias público-privadas, reestruturação de serviços públicos, etc..
A anunciada estratégia de desvalorização salarial seria trágica se viesse a ser adoptada. Mas, felizmente, há alternativas e espera-se que funcionem as mediações democráticas para as construir, para bem das pessoas e da sua dignidade e qualidade de vida, para o maior bem comum e para a sustentabilidade da democracia e a paz social.
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