Há uns dias atrás caiu-nos em cima das secretárias e nos écrans de televisão, a notícia de que o Banco Central Europeu (BCE) estava pronto a emprestar 529,53 mil milhões de euros a 800 bancos europeus, a uma taxa de 1%. Para relativizar os valores, recorde-se que o empréstimo a Portugal foi previsto como podendo vir a ser de 78 mil milhões de euros, isto é, quase 1/7 deste total. O objetivo enunciado é o de que se pretende por essa via “estabilizar o sistema financeiro e reativar o crédito”.
Estranho! Então não há dinheiro para os estados e há para os bancos?
Mas vamos por partes:
1. Já em Dezembro de 2011 o BCE se tinha mostrado compreensivo com o sistema bancário, tendo, nas mesmas condições, emprestado 489 mil milhões de euros a 523 bancos;
2. Face às necessidades de financiamento dos estados membros, temos assistido, ao longo dos últimos tempos, à insensibilidade do BCE para, do mesmo modo que agora o faz para os bancos, lhes conceder o crédito de que necessitam;
3. Pelo contrário, os estados são reenviados para os mercados financeiros, ou para outros mecanismos de financiamento, onde têm que pagar um juro que, contrariamente ao que acontece com os bancos, não é de 1%, mas superior, a 4 ou 5%;
4. A pergunta que não pode deixar de ser posta é a de saber porque é que o investimento nos bancos é mais seguro do que o investimento nos estados, implicando o pagamento de uma taxa de juro menor;
5. Esta benemerência do BCE face aos bancos não é algo que só tenha aparecido em Dezembro, mas uma prática de longa data;
6. Por ex., quem não se recorda de que os bancos portugueses, quando já não conseguiam financiar-se no mercado interbancário, foram financiar-se ao BCE (à mesma taxa de 1%) para, depois comprarem dívida pública portuguesa a 7 ou 8%?;
7. Sendo a taxa de 1% inferior à do mercado, alguém vai ter de pagar a diferença; sabem quem é? Nós.
8. Dito de outro modo, não há liquidez para financiar os estados, para que estes possam vir a financiar a economia real, mas há liquidez para financiar os bancos que deveriam fazer chegar os financiamentos obtidos à economia, mas não fazem;
9. Ou, ainda, há dinheiro para estabilizar o sistema financeiro e reativar o crédito, mas não há dinheiro para fazer crescer a economia, para aumentar o emprego, para fazer face às necessidades da economia social, para financiar a educação e a saúde, etc;
10. Dir-se-á, os bancos são intermediários financeiros, cuja vocação principal é a de financiarem a economia; fazem-no melhor que os estados;
11. Mas, então, deve perguntar-se, se é assim, porque é que não financiam?
12. A razão parece simples; o dinheiro que chega aos bancos, em lugar de se dirigir para a economia vai ser afeto à “estabilização do sistema financeiro”;
13. Isto quer dizer que o sistema financeiro está desestabilizado; mas importa perguntar porquê;
14. Todos se recordam de, ainda há poucos anos, muito se falar das inovações de produtos financeiros, prometendo mundos e fundos a quem os comprasse, mas tendo subjacentes níveis de risco cada vez maiores, que nem sempre eram convenientemente explicitados nas contratualizações estabelecidas;
15. Quem comprava estes novos produtos, não eram, apenas, as pessoas individualmente mas, também, as empresas, as instituições, os fundos de pensões, os estados, etc;
16.Daí até se começarem a abrir grandes buracos de desvalorização dos ativos comprados, foi um ápice;
17.E agora?; agora é preciso financiar os bancos para que os buracos sejam tapados e para que aqueles que andaram a fazer especulação financeira não vejam o valor dos seus ativos demasiado diminuído (cobrir os descobertos e as imparidades).
Verdadeiramente estranho que é tudo isto!. Parece que o Mundo ficou de “pernas para o ar”. O que era instrumental passou a ser o objetivo (o sistema financeiro) e que era o objetivo passou a ser o instrumento (a economia para as pessoas).
Quase que não dá para entender como é que nos deixamos hipnotizar para chegarmos até aqui.
Não é bem assim. Temos de procurar outras explicações.
Tudo isto não é, e não poderia deixar de ser, senão o resultado, de haver muitos que querem que o mundo esteja de “pernas para o ar” e terem concebido justificações teóricas para que devesse ser assim.
Vejamos:
1. Qualquer pessoa entende que num qualquer estado, ou federação de estados, o Banco Central deve estar ao serviço desses estados, na promoção do desenvolvimento e do bem-estar; o Banco Central que possui como uma das suas principais atribuições, a emissão de moeda, é o principal financiador do estado e, por isso, deve ser colocado ao seu serviço; se for o BCE, ele deve estar ao serviço do financiamento do conjunto dos estados europeus;
2. No entanto, a partir de certa altura, começaram a verificar-se abusos, com os estados a emitir mais moeda do que a que deveria corresponder ao aumento da riqueza adicional criada, e a gerarem-se tensões inflacionistas que não fomentavam o desenvolvimento das economias;
3. Em lugar de se corrigirem os abusos entendeu-se que o melhor era cortar as pernas aos estados; a emissão de moeda deixou de ser determinada pela vontade dos estados, tornando-se os bancos centrais completamente independentes dos estados;
4. A intervenção dos estados na sociedade e na economia ficou, assim, diminuída; a economia de bem-estar deteriorou-se; o desemprego começou a aumentar; o liberalismo começou a campear e, em vez de promover a iniciativa, transformou-se num instrumento de transferência de riqueza dos que menos têm para os que mais têm;
5. Com efeito os bens e serviços colocados pelos estados ao serviço de todos (bens e serviços públicos) e, em particular, dos que possuem menores rendimentos, são uma forma indireta de corrigir os desequilíbrios na distribuição dos rendimentos primários (obtidos por via da participação no processo produtivo);
6. Quando se criam condições para que diminua o bolo dos bens e serviços públicos, o que se está a promover é, de facto, a transferência indireta de rendimentos dos que menos têm, para os que mais têm.
Ahhh!
Pois é, talvez que com esta explicação já dê para entender; já dê para entender para onde está a ir o dinheiro, o nosso dinheiro.
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