Em muitas circunstâncias, as pessoas e as organizações deixam-se tentar pelo abismo, parecendo nisso encontrar prazer, pelo menos, antes de a queda no abismo ter acontecido. Depois disso já há, normalmente, pouco a fazer!
Vem esta alusão a propósito, da actual situação da sociedade portuguesa, da sua economia, do comportamento dos políticos e, em geral, do conjunto da sociedade. Do ponto de vista económico, tem-se insistido em que as duas questões mais gravosas que, hoje, se colocam a Portugal, são a da dívida e a do crescimento (acompanhado de desenvolvimento). São ambas igualmente importantes? Sim, mas resta saber qual é a que deve começar por merecer maior atenção.
A resposta não é imediata, nem fácil e, sobretudo, não pode se equacionada, apenas, com uma resposta técnica, embora deva por ela ser informada. Dar-se-á maior atenção a uma ou a outra, conforme o ponto de observação em que nos colocamos, isto é, os pressupostos culturais, a matriz ideológica e os interesses materiais ou outros com que, cada um ou organização, se encontra comprometido.
É por estas razões que nem mesmo os cientistas e técnicos mais independentes (todos têm pressupostos e interesses) podem ser considerados completamente neutros quando sobre um qualquer assunto emitem uma opinião. Em economia, são múltiplos os casos que ilustram a impossibilidade da neutralidade e, por isso também, da autoridade que com que alguns pretendem, por vezes, arrogar-se, suportada por argumentos de natureza técnica
A divergência de pontos de vista anda, em geral, associada ao estabelecimento da relação de causa e efeito entre dois fenómenos. Vejamos alguns exemplos:
1. A dívida e o crescimento
a) É evidente que um país endividado põe em causa as suas oportunidades de crescimento e desenvolvimento e, por isso há quem conclua que se tem que equacionar, em primeiro lugar, os problemas da dívida para que, depois, o crescimento aconteça; a causa é a dívida e o efeito o crescimento;
b) Tem igual razoabilidade dizer-se que não há dívida que possa ser superada se o país não conseguir crescer para, sobreviver, pagar a dívida e os juros que lhe estão associados; mas uma terapêutica para a dívida que coloque o país em recessão, por muitos sacrifícios que sejam feitos, jamais permitirá que ele possa vir a conseguir pagar a sua dívida; pelo contrário, poderá vir a encontrar-se na situação de ter que socorrer-se de maior endividamento; aqui a causa é o crescimento e o efeito o nível de endividamento;
c) Muito provavelmente terá que se adoptar uma estratégia que considere combinações de políticas económicas que se dirijam, quer à diminuição da dívida, quer ao aumento de crescimento, ainda que para tal possam ter que ser postos em causa alguns interesses que, à partida, alguns pensariam inquestionáveis.
2. A taxa de salários e a inflação
a) A relação entre a taxa de salários e a inflação tem provocado, ou provocou, debates dos mais vivos na ciência económica; parece inquestionável que quando a taxa de salários aumenta, aumenta o poder de compra; como raramente o aparelho produtivo tem capacidade para se adaptar aos novos volumes e modificações estruturais da procura, vai gerar-se uma tensão entre a oferta e a procura, com aumento dos preços e, consequentemente, inflação; a causa é o aumento da taxa de salários e o efeito é a taxa de inflação;
b) Mas há um outro ponto de vista (visão): é sabido que a existência de uma taxa moderada de inflação incentiva o crescimento e, por essa via, a possibilidade de poderem vir a justificar-se aumentos da taxa de salários (não ignoro a possibilidade da existência de situações de inflação com recessão); a causa é a inflação e o efeito o aumento da taxa de salários;
c) Também aqui teremos que manter algum equilíbrio, adoptando medidas de política que permitam gerir os aumentos da taxa de salários e da inflação, sem pôr em causa o objectivo do crescimento.
Muitos outros exemplos, em que a relação de causa e efeito pode ser uma ou a simétrica, poderiam ser dados, conforme os quadros culturais, ideológicos ou de interesses, dos que propõem determinadas medidas de política.
Vem tudo isto a propósito do abismo para que podemos ser conduzidos se para corrigir os problemas da dívida se insistir em adoptar, exclusivamente, medidas de política de carácter recessivo. Tal como o alpinista, com pouca preparação e falta de lucidez, que junto do precipício, manda avançar, sem que quaisquer cautelas sejam tomadas também, a propósito da dívida, vem um e diz ”nunca faremos a reestruturação da dívida e saberemos honrar os nossos compromissos”. Vem outro e acrescenta “o próximo governo pode surpreender e ir mais além das metas acordadas”. Cada um pretende ser o mais ousado.
Perante tais afirmações não pode deixar de ser colocada a questão: saberão estes senhores, verdadeiramente do que é que estão a falar? Estão certamente longe da posição de equilíbrio que acima referi e correm o risco de caírem no abismo, não tanto eles mas, sobretudo a infantaria que os segue e lhe sofre os principais efeitos, isto é, a grande maioria do povo deste país.
Falar de reestruturação da dívida era, até há poucas semanas, considerado como uma espécie de caminho para o inferno (ver a este propósito o que aqui e também aqui se escrevi anteriormente). Entretanto alguns dos que assim se posicionavam, ou os seus amigos, resolveram espreitar para traz da cortina e já começam a dizer que, afinal, o que lá está talvez não seja o inferno, mas porventura o limbo (esquecendo-se de que este já foi decretado extinto) e que, portanto, o que está à vista já não é o inferno, mas talvez possa ser o paraíso.
A renegociação, que necessariamente implica reestruturação, e começa a ser admitida por um cada vez maior número de académicos e comentadores, talvez tenha como pressuposto que, nem toda a dívida deve ser considerada como legítima (ver post anterior) e que a insistência na posição de intangibilidade da dívida, conduz a posições de perda, tanto para credores como para devedores.
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