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06 outubro 2020

O mercado de trabalho a decidir sobre o ensino superior…

 

Em artigo da edição de ontem do jornal Público, um Professor da Faculdade de Belas Artes chamava a atenção para os riscos da campanha encetada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior intitulada “Skills 4 pós-COVID – Competências para o Futuro” (sic)[1]. Tendo constatado que, para além das sessões de divulgação on line já realizadas, surgira entretanto um documento escrito, se bem que em versão preliminar, entendemos ser de nos debruçarmos sobre o mesmo.

À primeira vista, pareceria tratar-se de uma intervenção essencialmente de curto prazo, visando a resposta à crise desencadeada pela presente pandemia. E mesmo assim, o que aí se lê já seria preocupante. Mas é-o ainda mais porquanto em diversos momentos se refere no documento uma intenção de intervir estruturalmente nas articulações entre os sistemas de Ciência, de Ensino Superior e das entidades públicas e empresariais. E se explicitam, de entre os principais objectivos, o de “Empregar melhor (…)” e “(…) conciliar(ando) a oferta de cursos e a introdução de práticas inovadoras de ensino e aprendizagem com as competências requeridas pelo mercado de trabalho”. Não conseguimos encontrar, em todo o documento, mais do que uma mera referência ao objectivo científico, em abstracto, nada se dizendo sobre as dimensões ética, de aprofundamento científico e estímulo à investigação, de desenvolvimento humanista, de responsabilidade social da formação superior, de formação crítica e plural…

Tudo indica estarmos, uma vez mais, perante uma deriva funcionalista da concepção do Ensino Superior que faz do ajustamento ao mercado de trabalho a principal razão de ser da Universidade. Esta convicção reforça-se quando lemos que esta iniciativa estará intimamente associada a diagnósticos das necessidades de qualificação entretanto desenvolvidos em outros programas e projectos[2]. E não nos deixa praticamente margem para dúvidas quando vemos insistir-se tantas vezes na prioridade às “formações modulares, curtas e micro-credenciais”, na formação profissionalizante do ensino superior e no “Reforço generalizado de formações pós-graduadas de âmbito profissional, em estreita colaboração com empregadores, públicos e privados …”. Não falta, sequer, uma menção de importância às actividades de “up-skilling” e “re-skilling” dos anteriores diplomados de modo a um melhor reajustamento às novas exigências dos mercados de trabalho. Como se de formação profissional de alto nível se tratasse. E, mesmo quando se referem as necessidades de formação em competências transversais, cognitivas, sociais e emocionais, de imediato se acrescenta que estas são cada vez mais valorizadas pelo mercado de trabalho no qual a capacidade de transformação e adaptação são indispensáveis.

Importa perguntar: Deve o Ensino Superior ignorar o que se passa no mercado de trabalho?

Não, não deve! E não o faz. De há muito que as universidades se abrem ao tecido económico envolvente. E que aí procuram os interlocutores e os informantes privilegiados sobre a natureza e características dos perfis de diplomados que as empresas e outras instituições empregadoras procuram. Aliás, vai-se mesmo muito mais longe e cada vez mais, estabelecendo-se parcerias de negócios entre as instituições do ensino superior e o mundo empresarial, nacional e internacional, o qual vem assegurando crescentemente boa parte do financiamento deste nível de ensino. E, naturalmente, assim se tendendo para uma dimensão cada vez maior da faceta mercantil dos ensinos universitário e politécnico…

Mas, até aqui, o ensino superior  – especialmente o público - tem-se estribado na sua missão de desenvolvimento e aprofundamento científicos, no incentivo e estímulo à investigação fundamental e não só aplicada, na concepção e aplicação da inovação pedagógica, como tão adequadamente soube fazer em resposta à pandemia… Neste documento, a total ausência de invocação desta missão fundadora, bem como de qualquer das suas componentes, é confrangedora.

Em boa verdade, estamos a correr o risco de deixar de ter ensino superior na sua verdadeira acepção.   

 



[1] João Cruz, “A utilidade do vírus no Ensino Superior”, Público, 5 de Outubro de 2020.

[2] Direcção-Geral do Ensino Superior (DGES) e EY-Augusto Mateus (2019).”Evolução da procura empresarial e necessidades de qualificação do capital humano” e OCDE (2018). “Labour Market Relevance and Outcomes – LMRO”. 

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