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16 março 2020

As teorias da transição, o acesso à informação e o COVID-19


Dificilmente se encontrará hoje em dia uma área de maior produção teórica em ciências sociais do que a que tem a ver com a crise do capitalismo e a transição para novos paradigmas. De uma maneira geral, esta produção tem origem em correntes e formas de pensar alternativas ao mainstream neoclássico por razões óbvias: a este não interessa o enfoque na crise dos modelos económicos regidos pelo mercado, já que a estes tenta agarrar-se desesperadamente como forma de sobrevivência. Entre os críticos daquela visão dominante não têm, no entanto, abundado os consensos. E, do mesmo modo, tem falhado a apresentação de propostas unificadas e operacionais que se afigurem como alternativa cabal à actual crise do modo de produção[1].

Para alguns autores, impor-se-ão concepções favoráveis ao decrescimento, já que no actual paradigma o crescimento tem até agora significado reforço das desigualdades sociais, recrudescimento da crise energética, falência dos – modestos – mecanismos de regulação, em especial nos mercados financeiros. No entanto, a maioria dos contributos coincide em verificar a inexistência, por agora, de um conjunto de requisitos indispensáveis a que aquela transição se verifique.

Buch-Hansen, por exemplo, refere que a ultrapassagem do presente paradigma socio-económico depende da conjugação das seguintes condições: uma crise profunda do capitalismo, a existência de um projecto político alternativo, uma ampla coligação de forças políticas e sociais que, abraçando tal projecto, o promovam através de acções de luta e um amplo consenso social[2]. Ora, segundo aquele autor, estes dois últimos requisitos estariam longe de se verificar.

Já para Mason, neo-marxista que reflecte igualmente sobre as condições de transição para um novo modo de produção, a perspectiva é bem mais optimista e funda-se nos aspectos positivos associados à tecnologia da informação: a proliferação da informação nas sociedades actuais e futuras levará só por si à erosão dos mecanismos de preços, já que muitos bens e serviços se tornarão de acesso gratuito. Assim, e por um lado, os mercados deixarão progressivamente de fazer sentido; por outro, caminhar-se-á para uma sociedade de abundância alimentada sistematicamente pela produção de nova informação… tendencialmente gratuita. O papel regulador do Estado é tido como fundamental para que tal possa ocorrer[3]. Analisando criticamente os marxistas ortodoxos por não terem considerado devidamente este aspecto virtuoso da tecnologia, especialmente da tecnologia da informação, Mason considera que esta via conduzirá naturalmente à perequação da taxa de lucro e, subsequente e inevitavelmente, a novo impulso da inovação pela (big) data. E, ainda, o carácter transversal deste tipo de inovação conseguirá vir a promover a coincidência das agendas da transição energética e económico-social, até agora de costas relativamente voltadas.

Em nossa opinião, esta perspectiva é excessivamente optimista, se não mesmo irrealista, pelo menos a curto prazo: aquilo a que vimos assistindo é, antes, a uma tentativa fortíssima de protecção da inovação, quer por parte das empresas que a dominam quer, mesmo, por parte dos decisores políticos, como bem nos mostra a última tentativa de Trump de vir a comprar à Alemanha a vacina contra o Corona vírus de forma a poder usá-la em proveito exclusivo dos – de alguns… – americanos. Uma intervenção regulatória eficaz a este nível não poderá deixar de passar pela revisão a fundo das políticas de patentes e, mais geralmente, do regime de propriedade. No entanto, a indispensável coordenação internacional num mundo globalizado como aquele em que vivemos mostra-se especialmente difícil.

A não ser que…

A não ser que, eventualmente, um factor crítico global venha a actuar como mobilizador do interesse comum… Para além do desenvolvimento dos primeiros mercados financeiros, da intensificação do comércio dos produtos agrícolas, da chegada dos europeus à América e da invenção da imprensa de caracteres móveis, foi a Peste, as sucessivas pestes, que contribuíram para o golpe de misericórdia do modelo feudal na transição para o capitalismo.
A tentação de comparar os efeitos apercebíveis do COVID-19 com os das pestes é grande, muitos se lhe têm vindo a referir. Talvez exageradamente, já que sabemos que a História nunca se repete da mesma forma… Não obstante, coloca-se-nos um conjunto de questões que aguçam a nossa curiosidade:

            - poderá a actual crise epidémica vir a constituir o cimento do necessário amplo consenso social a que se refere Buch-Hansen?
            - conseguirá ela despoletar a coordenação dos movimentos políticos e sociais conducentes a acções de luta eficaz e generalizada no combate ao presente modo de produção?
            - estarão os decisores políticos suficientemente conscientes da urgência da mobilização geral de forma a, de uma vez, se verificar coordenação de esforços internacionais em tempo de crise?
            - e, por fim, que papel poderá estar a desempenhar a crescente transversalização da produção e circulação da informação, despoletada pela crise viral através das redes sociais, no processo de concatenação global que considerámos estar ausente da reflexão de Paul Mason?

Quem poderá, e quererá, responder a estas questões?



[1] Ver, por exemplo, Escobar, A. (2015). Degrowth, post-development and transitions: a preliminary conversation. Sustain Sci, https://www.degrowth.org/wp-content/uploads/2015/07/ESCOBARDegrowth-postdevelopment-and-transitions_Escobar-2015.pdf
[2] Buch-Hansen, H. (2018). The Prerequisites for a Degrowth Paradigm Shift: Insights from Critical Political Economy. Ecological Economics, Volume 146, Abril 2018, Pp. 157-163, https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0921800916313726
[3] Mason, P. (2015). Pós-Capitalismo- Um guia para o nosso futuro. Penguin Random House. Lisboa: Objectiva.

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