Por estes dias decorrem nas escolas públicas reuniões de preparação do novo ano lectivo, com o objectivo de implementação de uma directiva do Ministério da educação que visa introduzir, a partir de Setembro, em todo o sistema, a chamada “flexibilização curricular dos ensinos básico e secundário”, autorizada em regime de experiência pedagógica no ano de 2017-18, por despacho ministerial, e levada à prática em alguns agrupamentos escolares, por decisão dos seus respectivos órgãos de gestão.
Envolta com espesso manto de silêncio, está em marcha uma reforma profunda da escola pública. Sem debate político; sem auscultação, séria e consequente, por parte do corpo docente das escolas e dos seus órgãos directivos; sem respeito pela Lei-Quadro em vigor; sem uma avaliação devidamente escrutinada da experiência pedagógica realizada.
Não se ignora a importância de uma gestão de currículo adequada ao respectivo contexto, que tenha na devida conta a motivação dos alunos e a sua participação nos processos de aprendizagem, como se propõe. Há, porém, que assegurar a consecução de objectivos gerais de conhecimento, de aquisição de conceitos e ferramentas de construção de pensamento crítico, de capacitação para o exercício de uma cidadania responsável e inserção na vida colectiva, de respeito pelo enquadramento da Lei Geral.
Não se vê que tais objectivos sejam alcançados, a partir de currículos construídos com base em sugestões dos próprios alunos, dos seus interesses imediatos e dos ensinamentos avulsos ministrados por docentes de várias disciplinas, quando tais conhecimentos venham a propósito de temáticas selecionadas pelos alunos. A avaliação de experiências já realizadas neste sentido mostra, precisamente, o contrário. Com efeito, por esta via, não se adquirem conceitos e outras ferramentas básicas de conhecimento científico, imprescindíveis para se avançar no conhecimento em geral. Nem se treina devidamente o esforço de aprender e o rigor do conhecimento.
Por outro lado, a flexibilização curricular leva à semestralidade de algumas disciplinas básicas, com consequente encurtamento dos conteúdos dos seus respectivos programas actualmente em vigor e à correspondente degradação do nível geral de conhecimento, com consequências graves no que se refere à desigualdade nas oportunidades de prosseguimento de estudos superiores e, obviamente, também com maior desigualdade nos resultados das provas de aferição geral de fim de ciclo, dada a diversidade das abordagens e temáticas diversamente seleccionadas.
A sedução da palavra “flexibilização” esconde, assim, riscos sérios de degradação da escola pública, com nefastas consequências futuras difíceis de avaliar. Riscos estes que vêm somar-se aos inerentes ao processo de municipalização em curso, se este não for conduzido com a devida prudência e sentido de responsabilidade por este bem comum que é o direito à igualdade de oportunidades de acesso e sucesso da educação para todos.
O experimentalismo não é bom conselheiro, sobretudo quando estão em causa processos com efeitos de longo prazo, como é o caso da educação das novas gerações. O manto de silêncio que, presentemente, o encobre na área da governação da educação (como em outras) diz muito da desatenção crónica dos cidadãos aos reais desafios da nossa sociedade e da irresponsabilidade dos políticos face à construção do futuro, envolvidos que ficam na miopia da casuística mais imediata.
Foi assim com a política de “inclusão”, talvez generosa na sua intenção, mas que deixou sem os devidos cuidados especiais muitas crianças e jovens com necessidades educativas especiais, interrompeu o trabalho que vinha sendo desenvolvido por técnicos da especialidade e sobrecarregou com tarefas suplementares os docentes com prejuízo da sua função específica.
Aqui fica o alerta, na cnvicção de que, por mais sumida que seja a nossa voz, não podemos deixar de tentar fazê-la ouvir, quando está em causa o futuro de uma geração. Como disse a jovem Greta Thunberg: Aprendi que nunca se é demasiado pequeno para fazer a diferença.
Fico na expectativa de que surjam outras vozes mais audíveis que a minha.
PS A este propósito lembro a edição em dois volumes de Pensar a Educação (2016) com um conjunto de reflexões que continuam de actualidade.
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