Os (as) que
poderão ter colocado esta questão estão, certamente, a referir-se ao facto de
no “Areia dos Dias” ainda não ter sido feito nenhum comentário aos trágicos acontecimentos de Paris da semana passada, querendo subliminarmente
fazer passar a mensagem de que poderíamos ter alguma contemporização com o
comportamento dos autores dos atentados.
Os que assim
possam pensar estão completamente enganados. Para estar com os que foram
vítimas nas suas vidas, ou nas suas liberdades está longe de estar provado que
a melhor maneira de o fazer é participar em manifestações de gritaria
irrefletida. Foi importante que o tempo, até agora, fosse de silêncio, para
melhor se poder refletir e pensar o futuro. A grande manifestação, em Paris,
foi uma iniciativa de silêncio. Todos lá estivemos, física, emocional ou em
partilha espiritual.
Os atentados de
Paris foram crimes hediondos e não podem deixar de ser denunciados. As suas
causas têm que ser combatidas por todos os meios. Perderam-se vidas humanas,
vinte (parece que aqui não estão contabilizadas as dos terroristas) e atacou-se
um dos fundamentos mais sagrados e mais estruturantes do nosso modo de viver: a
liberdade de expressão.
Desaparecida
a espuma das ondas, não importará dizer mais nada, para além do que tem sido
dito? Claro que sim. Antes de mais, é
incontornável a necessidade de tomarmos consciência que a destruição da vida
humana é o mais horrendo dos crimes e
dos ataques à dignidade da pessoa humana pela qual, nas suas múltiplas facetas, aqui, tanto nos temos
batido. Tem-se esquecido, no entanto, com
frequência, que a vida humana tem o mesmo valor, quer a cor da pele seja
branca, preta, amarela ou vermelha; quer olhemos para Paris, para a Ucrânia,
para o Afeganistão, para a Síria, para o Iraque ou para a Nigéria.
O que é que
nos tolhe os passos para, como em Paris, reagirmos contra um atentado que usando
uma menina-bomba provocou 20 mortos e um número indeterminado de feridos na
Nigéria?; contra o ataque realizado no Paquistão contra uma escola de que
resultou a morte de 141 inocentes, a quase totalidade crianças?; contra os
massacres em massa a que vamos assistindo nos vários territórios da chamada
república islâmica?; contra os bombardeamentos de escolas abrigando refugiados,
na faixa de Gaza?; contra os massacres provocados, com frequência, nos EUA, em
Escolas frequentadas por gente civilizada?, etc.
Perante este
filme de horrores deveríamos ser capazes de nos mobilizarmos como o fizemos com
Paris. Porque é que isso não acontece? Valeria a pena interrogarmo-nos sobre o
porquê e procurarmos encontrar as razões e os enquadramentos, políticos,
económicos, sociais e culturais que provocam tais massacres. Nunca é tarde para
o fazermos, porque atrás destes outros virão e virão com mais força, se nada
fizermos para o impedir.
Os
acontecimentos em Paris foram, também, um ataque contra as liberdades,
fundamento essencial da nossa civilização. Destruir esta liberdade é o
princípio da destruição do nosso modo de viver.
Até há pouco,
muitos pensavam, com frequência, que a superioridade da civilização ocidental
se sobreporia às restantes, nos valores e modos de vida. Apesar deste
sentimento de superioridade, os espíritos mais cultos sabiam que a existência
de multiplicidade de civilizações deveria ser tomada como uma riqueza, um
património comum e que daí só poderíamos vir a recolher vantagens. No entanto,
a globalização também aqui implantou os seus malefícios: as integrações
forçadas e mal digeridas não poderiam senão conduzir a violações de núcleos
essenciais das várias civilizações e culturas.
Continua a ser verdade a afirmação de que a nossa liberdade acaba onde começa a
liberdade dos outros, onde começa a agressão aos valores culturais ou
religiosos dos que connosco partilham a humanidade. Sabemos que o Islão
considera como uma blasfémia a publicação de figurações do profeta Maomé. Os
valores republicanos da sociedade, como já vi defender, consideram tal uma
prática retrógrada e, por isso, invocam o direito à blasfémia, como parece
poder vir a acontecer com a publicação do 1º número do Charlie, pós atentados.
Não me parece que se possa dizer que temos direito à blasfémia, porque a
prática da blasfémia é, sempre, uma agressão gratuita contra a dignidade do outro
ou contra os valores de outros.
Com tudo o
que atrás foi dito, fica claro que nenhuma violação da dignidade humana pode
ser considerada como um meio de combate contra invocadas blasfémias, do mesmo
modo que, a prática de blasfémias gratuitas, sobretudo se atingem valores
religiosos de outras culturas, não pode ser tomada como um instrumento de promover
a evolução de culturas ditas “obscurantistas” para a cultura dita da “luz”.
Os atentados
de Paris têm que ser absolutamente condenados e tudo tem que ser feito para que
outras tentativas semelhantes, onde quer que sejam promovidas, sejam evitadas.
Boaventura Sousa Santos (BSS) intitula o seu artigo hoje (14/01/15) no PÚBLICO assim: "Charlie Hebdo: uma reflexão difícil". Por isso, dou os parabéns ao MBA por este post.
ResponderEliminarDito isto, concordando com quase todo o conteúdo, é-me difícil acompanhá-lo quando no antepenúltimo parágrafo se refere a que o Islão considera blasfémia qualquer figuração de Maomé e retira como consequência não se poder dizer que temos direito à blasfémia, porque a sua prática "é...uma agressão...contra a dignidade ...ou...os valores de outros". Mas - e aqui os ofendidos sentirão uma contradição - mas a liberdade de expressão não pode impedir que se publique.
BSS, às tantas, formula "várias perguntas sem resposta por agora". E logo a primeira é:" A defesa da laicidade sem limites numa Europa intercultural, onde muitas populações não se reconhecem em tal valor, será afinal uma forma de extremismo?" . Mas eu também pergunto: e então para respeitar esse "não se reconhecerem" em tal valor da laicidade, teremos nós, sociedades europeias, que prescindir dele? Não me parece...