Uma das teorias de referência em Economia da Educação e Economia do Trabalho, a do investimento em capital humano (TICH), volta a constituir pedra de toque no suporte à decisão política, agora sob a égide neoliberal, pesem embora mais de três décadas de crítica sistemática a que tem vindo a estar sujeita.
Com efeito, sucessivas gerações de economistas e sociólogos/as críticos/as do mainstream a têm vindo a debater e criticar sob vários pontos de vista, um dos quais o da estreita dependência face ao mercado de trabalho que aquela teoria supõe. Como se a decisão de se vir a estudar mais dependesse exclusivamente das expectativas de um rendimento futuro mais elevado e, supostamente, constante até ao fim da vida activa. Toda a discussão sobre a escola democrática, missão e mérito da educação pública, pedagogia crítica, novas abordagens ao desenvolvimento pessoal e humano... vieram entretanto fazendo o seu caminho e, naturalmente, desconstruindo os pressupostos daquela abordagem. Até que a ideologia neoliberal a recupera de novo e lhe dá ainda mais fôlego...
Como se podem, então, entender as bases de uma tal teoria, em termos necessariamente muito gerais? Suponhamos que um/a jovem licenciado/a dispõe de uns milhares de euros em recursos financeiros - pré condição que a TICH praticamente ignora... - e que se lhe coloca a alternativa entre investir num dado negócio ou fazer, por exemplo, um mestrado, ou outra graduação. Como decidir? Segundo aquela teoria, o/a jovem decidirá, racionalmente, pela hipótese que lhe indique maiores expectativas de rentabilidade, isto é, um salário/rendimento adicional ao que teria se ficasse com menos estudos/não investisse no negócio, salário ou rendimento esses que constituiriam um ganho extra até à idade da reforma.
Teria assim de contabilizar, relativamente à hipótese estudos, os custos directos (propinas, livros, transportes, eventual alojamento...) e indirectos (perda de outras oportunidades, v.g. trabalho e lazer), deduzindo do total apoios e subsídios que eventualmente viesse a receber do Estado, como, por exemplo, bolsa de estudos, residência universitária, ou outros. Compará-los-ia então, e sempre segundo a TICH, com a expectativa actual do rendimento adicional futuro, sob a forma de salário mais elevado, deduzidos impostos e outras obrigações, a receber supostamente até ao fim da vida de trabalho. A actualização para o presente, ou seja, para o momento em que deve decidir, dos eventuais ganhos adicionais futuros é feita através de uma "taxa de desconto", taxa essa que mede, para o indivíduo, a rentabilidade esperada de um tal "investimento" (taxa interna de rentabilidade). É claro que o mesmo raciocínio se aplicaria caso o nível de estudos seguinte fosse o doutoramento ou um pós-doutoramento, normalmente já no âmbito do sistema de investigação.
Mas... expectativas actuais, não são mais do que isso. Risco e incerteza são dois elementos fundamentais para o eventual (des)acerto da decisão tomada. E nas actuais condições de instabilidade e precariedade de funcionamento dos mercados de trabalho, é grande a probabilidade de não vir a estar reunida a condição fundamental ao funcionamento das hipóteses da TICH: o acesso ("automático"...) a um posto de trabalho adequado, isto é, compatível em exigências com as qualificações e competências obtidas nos anos adicionais de estudo, estável, para permitir o tal fluxo contínuo de rendimento até à reforma e adequadamente remunerador, ou seja, susceptível de proporcionar a cobertura dos custos directos e indirectos (descontados eventuais subsídios) e de garantir, ainda, uma margem de rentabilidade.
E o papel do Estado ?
O Estado é, naturalmente, parte interessada neste processo, extensivo ao conjunto dos cidadãos e cidadãs que têm a dita de poder tomar decisões como a referida. Em boa verdade, é-o também enquanto decisor em matérias que se colocam a outros níveis de estudos como, por exemplo, a da extensão ou não da escolaridade obrigatória, assunto que, em parte, não é de todo estranho àquela mesma lógica de rentabilidade. Mas é parte interessada sobretudo enquanto agente fundamental do processo de desenvolvimento económico e social, para o qual a educação e a investigação constituem contributos fundamentais. Assim o governo em gestão atribua, de facto, a este desígnio a prioridade que, teoricamente, não se cansará de publicitar...
Por comodidade, consideremos apenas a educação pública e o ensino superior. Como é do conhecimento geral, o Estado assume, em maior ou menor grau, parte dos custos com o ensino e formação dos 1ºs ciclos (anteriores licenciaturas) e, ainda mais reduzidamente, com estudos avançados (mestrados e doutoramentos), através do financiamento às universidades e politécnicos. Como é igualmente bem conhecido, e as estatísticas do INE, EUROSTAT e OCDE bem o atestam, no caso português mas também no grego, espanhol e irlandês, entre outros, aquela parcela de financiamento público tem vindo a reduzir-se drasticamente de ano para ano. Por outro lado, o Estado também apoia, financeira e/ou materialmente, parte dos encargos que estudantes e famílias têm de suportar com a continuação de estudos; fá-lo, designadamente, através da atribuição de bolsas, de estudo e investigação, disponibilização de alojamento em residências, subsidiando refeições...
Qual a vantagem que o Estado tem, então?
Num regime democrático, o Estado estará, obviamente, a cumprir o seu papel de promotor do desenvolvimento económico e social. Mas, também neste caso, a TICH tem uma versão própria. Ao financiar parte dos custos - individuais e sociais - com educação e investigação, o Estado promove, do mesmo modo, um investimento no "capital humano" da sociedade, do qual espera vir a obter um retorno futuro em termos de mais avultados impostos sobre o rendimento, receita acrescida em impostos indirectos sobre outros tipos de consumos, redução nos encargos previsíveis com subsídios de desemprego, entre outros. Ora, quando o mercado de trabalho, em contexto de crise ou mesmo de desemprego estrutural dos/as mais qualificados/as, não disponibiliza postos de trabalho correspondente aos níveis de estudos avançados, ou só o faz muito limitadamente e em termos de trabalho não adequado, instável e insuficientemente remunerador, as hipóteses da TICH caem aqui por terra, igualmente.
Nestas condições, aquela teoria estabelece que o decisor Estado não deverá "investir em capital humano", já que corre não só o risco de não vir a tirar daí qualquer margem de rentabilidade como, até, de nem conseguir eventualmente vir a cobrir os custos de financiamento. É que, mesmo que opte pelo "incentivo à exportação" de... altas qualificações, como sucede agora em Portugal, o retorno de um tal investimento virá a ser acaparado pelas outras economias, num processo claro de free riding. Daí os cortes brutais no financiamento da universidade pública, nas bolsas de estudo dos melhores alunos quando as famílias sofrem tão grandes cortes no rendimento disponível, nas bolsas de doutoramento e pós doutoramento, ao que consta à revelia, por vezes, da avaliação pelos competentes painéis...
E se o governo tiver imolado o desenvolvimento à rentabilidade?
Agradeço à Margarida Chagas Lopes esta bem documentada lição de economia dos recursos humanos que ajuda a explicar o papel do factor ideológico em todo este raciocínio.
ResponderEliminarParabens!