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02 novembro 2013

E que tal a “reforma do Estado”, aos seus 66 anos e depois de 45 anos de bom e dedicado serviço?

Pressentia-se que aquilo não ia acabar bem. Desde a assinatura do "memorando de entendimento" que de outra coisa não se falava, da “Reforma do Estado”. Nunca o Governo esclareceu com clareza o que é que queria dizer com tal propósito. Não tendo sido capaz de o fazer, foi pondo remendos nas calças: cortou aqui, coseu acolá, e as calças vão tendo parecenças com as de um palhaço. Isto é, o Estado, de tanta dentada que vai sofrendo, vai ficando de tal modo ferido e debilitado que se torna cada vez mais incapaz de dar resposta às funções que era pressuposto exercer.
 
Vai daí, o Sr. Vice-Primeiro Ministro, fazendo jus às suas convicções e declarações antes proferidas, sem o dizer explicitamente, foi fazendo crer que a “Reforma do Estado” era necessária, mas que não podia ser feita com o corta aqui e remenda acolá, antes deveria obedecer a um plano que garantisse uma coerência global dos resultados esperados. Em consequência, fez passar a ideia de que ele próprio se encarregaria do assunto.
 
O outro parceiro da coligação disse que sim senhor, mas não esteve para esperar por estes salamaleques; continuou a investida do corta e remenda, como quem diz que, em tempo de guerra não se limpam armas. A sua Reforma continuou. Quando viesse a do Vice-Primeiro Ministro logo se veria!
 
Anunciou-se que o Vice-Primeiro Ministro prepararia um Guião da Reforma. No mundo do espetáculo o guião é o texto que reproduz os diálogos dos atores ou artistas. No das artes militares é o pendão que vai à frente. Por isso, houve quem imaginasse que, de tanto anunciado, o Guião traria, pelo menos, uma espécie de grandes linhas de orientação (vol de oiseau) sobre a pretendida Reforma do Estado.
 
E o que vemos? Vemos um enunciado de medidas avulsas, mas que apesar de avulsas atingem áreas centrais da organização e funcionamento do Estado: a função pública, a fiscalidade, a educação, a saúde, os tribunais, as privatizações, etc. São avulsas, porque nenhuma evidência é feita do impacto das medidas tomadas numa área, sobre o funcionamento das outras áreas. Contudo, o “memorando de entendimento” não deixa dúvidas de que o objetivo central da Reforma é o de diminuir a despesa do Estado. No Guião nem um único número, uma simples avaliação quantificada sobre o assunto. Fica-se, assim, sem se saber para onde é que nos leva a reforma deste Guião.
 
Bem mais pragmático é o Dr. Rosalino. Deixa o Sr. Vice-Primeiro Ministro entretido com os seus passos de salão e, como a traça escondida na bainha, vai cortando aqui, acolá e mais acolá. Vai dizendo com os seus botões: olha, se eu estivesse à espera deste, que trabalho de casa é que eu ia levar à troika? Deixa-os bailar, porque quem faz a única Reforma do Estado que interessa sou eu. E o Primeiro sorri e esfrega as mãos de contente sussurrando, o Vice há-de espalhar-se, mas que se espalhe sozinho.
 
Poderá haver quem pense que estou a advogar que nenhuma reforma e em nenhuma circunstância é necessária. Estou longe de pensar tal coisa, só que Reforma do Estado é uma outra coisa e rege-se por propósitos que não começam por ser os financeiros. Trata-se então de quê?
 
Para responder convém que nos entendamos sobre o que é o Estado e o que é que dele esperamos. O Estado é uma Comunidade, com um território de referência e com uma certa identidade política. Procura atingir objetivos de segurança, de justiça e de bem-estar económico e social. Para isso organiza-se exercendo as funções legislativa, executiva e judicial.
 
Uma reforma do Estado pode ter vários conteúdos: redefinir os objetivos (fins), reorganizar a estrutura funcional que permite atingir os objetivos, alterar os procedimentos que permitem melhor realizar os objetivos ou várias destas componentes, em simultâneo. Qualquer nação, politicamente bem estruturada, define e enquadra os objetivos a atingir, através de um documento que consolida o equilíbrio dos objetivos a atingir. É a Constituição, a Carta Constitucional ou equivalente. Modificar os objetivos ou o seu conteúdo significa alterar a Constituição. As outras componentes têm carater instrumental em relação aos objetivos e são, em geral, da competência de um ou vários dos poderes executivos. Quando se diz que se pretende reduzir o Estado está-se, naturalmente, a mexer nos objetivos e, por isso, a modificar o conteúdo da Constituição.
 
E o Guião o que é que nos traz? Uma caldeirada de tudo isto, colocando ao mesmo nível objetivos e instrumentos. Daí resultará, segundo o autor, ou autores, um Estado Melhor e é assim que intitula o Guião apresentado. Com este título o Guião denuncia um pressuposto de natureza ideológica que existe, mas não é explicitado. Com efeito, para dizermos se algo é melhor ou pior, teremos que ter uma escala de valores, um critério.
 
Evidentemente que a Constituição tem subjacente uma escala de valores e como documento fundamental que preside à organização do Estado não pode ser alterado pelo Governo. Ora, a escala de valores que permite dizer que teremos um Estado Melhor está longe de se compatibilizar com a escala de valores subjacente à Constituição.
 
Quando se pretende privatizar serviços de saúde e de educação, reduzir o peso da máquina do Estado, introduzir a ”regra de ouro” do deficit público no texto da Constituição, alterar a estrutura territorial do Estado quando se tem adiada a regionalização prevista na Constituição, reformar a Segurança Social para promover a sua sustentabilidade sem nada dizer sobre as verdadeiras razões para que se verifique a falta de sustentabilidade, modificar a arquitetura do sistema judicial está-se, evidentemente, a destruir ou modificar a Constituição, tal como a conhecemos.
 
E então, não se pode, nem deve fazer nada? Tudo pode ser feito, mas tudo tem que ser feito com regras. O que implicar alterações na estrutura fundamental dos objetivos garantidos pela Constituição só pode ser feito após amplo consenso constitucional, obtido no Parlamento mas, suportado por alargado debate nacional.
 
Como vimos antes não é preciso tocar nos objetivos para se fazer a Reforma do Estado. Os objetivos podem permanecer inalterados, mas tudo deve ser feito para que o funcionamento do Estado se processe de forma eficiente, isto é, obtendo os mesmos objetivos com os menores custos.
 
Assim, em vez do Guião talvez fosse de prever, como se faz para as pessoas, a reforma da estrutura fundamental do Estado, nascida com a Constituição de 1976, para quando ele já tiver pelo menos 66 anos de idade e 45 anos de bons e leais serviços prestados.

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