Pressentia-se que aquilo não ia acabar bem.
Desde a assinatura do "memorando de entendimento" que de outra coisa não se falava,
da “Reforma do Estado”. Nunca o Governo esclareceu com clareza o que é que
queria dizer com tal propósito. Não tendo sido capaz de o fazer, foi pondo
remendos nas calças: cortou aqui, coseu acolá, e as calças vão tendo parecenças
com as de um palhaço. Isto é, o Estado, de tanta dentada que vai sofrendo, vai
ficando de tal modo ferido e debilitado que se torna cada vez mais incapaz de
dar resposta às funções que era pressuposto exercer.
Vai daí, o Sr. Vice-Primeiro Ministro, fazendo
jus às suas convicções e declarações antes proferidas, sem o dizer
explicitamente, foi fazendo crer que a “Reforma do Estado” era necessária, mas
que não podia ser feita com o corta aqui e remenda acolá, antes deveria
obedecer a um plano que garantisse uma coerência global dos resultados esperados. Em consequência, fez passar a ideia de que ele próprio se
encarregaria do assunto.
O outro parceiro da coligação disse que sim
senhor, mas não esteve para esperar por estes salamaleques; continuou a
investida do corta e remenda, como quem diz que, em tempo de guerra não se
limpam armas. A sua Reforma continuou. Quando viesse a do Vice-Primeiro
Ministro logo se veria!
Anunciou-se que o Vice-Primeiro Ministro
prepararia um Guião da Reforma. No mundo do espetáculo o guião é o texto que
reproduz os diálogos dos atores ou artistas. No das artes militares é o pendão
que vai à frente. Por isso, houve quem imaginasse que, de tanto anunciado, o
Guião traria, pelo menos, uma espécie de grandes linhas de orientação (vol
de oiseau) sobre a pretendida Reforma do Estado.
E o que vemos? Vemos um enunciado de medidas
avulsas, mas que apesar de avulsas atingem áreas centrais da organização e
funcionamento do Estado: a função pública, a fiscalidade, a educação, a saúde,
os tribunais, as privatizações, etc. São avulsas, porque nenhuma evidência é
feita do impacto das medidas tomadas numa área, sobre o funcionamento das outras
áreas. Contudo, o “memorando de entendimento” não deixa dúvidas de que o
objetivo central da Reforma é o de diminuir a despesa do Estado. No Guião nem
um único número, uma simples avaliação quantificada sobre o assunto. Fica-se,
assim, sem se saber para onde é que nos leva a reforma deste Guião.
Bem mais pragmático é o Dr. Rosalino. Deixa o
Sr. Vice-Primeiro Ministro entretido com os seus passos de salão e, como a
traça escondida na bainha, vai cortando aqui, acolá e mais acolá. Vai dizendo
com os seus botões: olha, se eu estivesse à espera deste, que trabalho de casa
é que eu ia levar à troika? Deixa-os bailar, porque quem faz a única Reforma do
Estado que interessa sou eu. E o Primeiro sorri e esfrega as mãos de contente sussurrando,
o Vice há-de espalhar-se, mas que se espalhe sozinho.
Poderá haver quem pense que estou a advogar
que nenhuma reforma e em nenhuma circunstância é necessária. Estou longe de
pensar tal coisa, só que Reforma do Estado é uma outra coisa e rege-se por
propósitos que não começam por ser os financeiros. Trata-se então de quê?
Para responder convém que nos entendamos sobre
o que é o Estado e o que é que dele esperamos. O Estado é uma Comunidade, com
um território de referência e com uma certa identidade política. Procura
atingir objetivos de segurança, de justiça e de bem-estar económico e social.
Para isso organiza-se exercendo as funções legislativa, executiva e judicial.
Uma reforma do Estado pode ter vários conteúdos:
redefinir os objetivos (fins), reorganizar a estrutura funcional que permite
atingir os objetivos, alterar os procedimentos que permitem melhor realizar os
objetivos ou várias destas componentes, em simultâneo. Qualquer nação, politicamente
bem estruturada, define e enquadra os objetivos a atingir, através de um
documento que consolida o equilíbrio dos objetivos a atingir. É a Constituição,
a Carta Constitucional ou equivalente. Modificar os objetivos ou o seu conteúdo
significa alterar a Constituição. As outras componentes têm carater
instrumental em relação aos objetivos e são, em geral, da competência de um ou
vários dos poderes executivos. Quando se diz que se pretende reduzir o Estado está-se,
naturalmente, a mexer nos objetivos e, por isso, a modificar o conteúdo da
Constituição.
E o Guião o que é que nos traz? Uma caldeirada
de tudo isto, colocando ao mesmo nível objetivos e instrumentos. Daí resultará,
segundo o autor, ou autores, um Estado Melhor e é assim que intitula o Guião
apresentado. Com este título o Guião denuncia um pressuposto de natureza
ideológica que existe, mas não é explicitado. Com efeito, para
dizermos se algo é melhor ou pior, teremos que ter uma escala de valores, um
critério.
Evidentemente que a Constituição tem
subjacente uma escala de valores e como documento fundamental que preside à
organização do Estado não pode ser alterado pelo Governo. Ora, a escala de
valores que permite dizer que teremos um Estado Melhor está longe de se
compatibilizar com a escala de valores subjacente à Constituição.
Quando se pretende privatizar serviços de
saúde e de educação, reduzir o peso da máquina do Estado, introduzir a ”regra
de ouro” do deficit público no texto da Constituição, alterar a estrutura
territorial do Estado quando se tem adiada a regionalização prevista na Constituição,
reformar a Segurança Social para promover a sua sustentabilidade sem nada dizer
sobre as verdadeiras razões para que se verifique a falta de sustentabilidade,
modificar a arquitetura do sistema judicial está-se, evidentemente, a destruir
ou modificar a Constituição, tal como a conhecemos.
E então, não se pode, nem deve fazer nada?
Tudo pode ser feito, mas tudo tem que ser feito com regras. O que implicar
alterações na estrutura fundamental dos objetivos garantidos pela Constituição
só pode ser feito após amplo consenso constitucional, obtido no Parlamento mas,
suportado por alargado debate nacional.
Como vimos antes não é preciso tocar nos objetivos
para se fazer a Reforma do Estado. Os objetivos podem permanecer inalterados,
mas tudo deve ser feito para que o funcionamento do Estado se processe de forma
eficiente, isto é, obtendo os mesmos objetivos com os menores custos.
Assim, em vez do Guião talvez fosse de prever,
como se faz para as pessoas, a reforma da estrutura fundamental do Estado, nascida
com a Constituição de 1976, para quando ele já tiver pelo menos 66 anos de idade
e 45 anos de bons e leais serviços prestados.
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