No passado
dia 22 o Papa Francisco deslocou-se -se a Cagliari, na ilha da Sardenha e aí
pronunciou ensinamentos que vêm na linha do que a Igreja sempre nos tem
transmitido através da sua Doutrina Social, mas que, nas atuais circunstâncias
de crise mundial, ganham uma luminosa acuidade. As declarações que aí fez
tiveram nos media um eco momentâneo, mas
rapidamente desapareceram do seu horizonte de comunicação. São, no entanto,
declarações de enorme importância, sobre as quais nos devemos deter, com atenção
e de forma pausada.
Vale a pena
começarmos por recordar que no início da semana, como se diz no blog “Ouvido do Vento”,
a propósito da partida do grande poeta da sensibilidade (Ramos Rosa): “O poeta fechou
o livro e adormeceu”. No momento da sua partida, um outro poeta (António Carlos
Cortez), muito ajustadamente, disse: “Neste tempo de sadismo financeiro, lê-lo
é fundamental”. Leiamo-lo pois!
É sobre o sadismo
financeiro que o Papa Francisco se pronuncia. Chamo a
atenção para o fato de que Francisco não demoniza o dinheiro, enquanto
intermediário de transações e nas suas outras funções tradicionais. Na sua
intervenção fala, antes, do dinheiro enquanto fim em si mesmo, enquanto
instrumento de poder.
Com a
particular atenção que já lhe conhecemos, para encontrar e escutar as pessoas,
cada pessoa, Francisco ouviu os testemunhos de três participantes, cuja vida mudou
devido à crise: um desempregado, um pastor e uma empresária. Para todos a crise
trouxe a falta de trabalho e a desesperança.
O Papa reagiu,
dizendo que a falta de trabalho é uma consequência da escolha global onde quem
comanda é o dinheiro. Acrescentou que “onde não há trabalho falta a dignidade”.
Um sistema económico que assim se comporta é um “sistema sem ética e injusto”.
A idolatria
do sistema condu-lo a destruir, em primeiro lugar, os mais frágeis e
desprotegidos: os jovens e os idosos. Sem trabalho os jovens não podem caminhar
as veredas da dignidade e da esperança. Os idosos são os mais injustiçados
porque incapazes de se defenderem. Uns e outros estão sujeitos a uma verdadeira
eutanásia financeira.
O dinheiro
comanda! O dinheiro tudo submete! É o que neste blog vários dos seus autores têm vindo a
sublinhar: as perversões trazidas ao funcionamento das
economias e das sociedades, cada uma de per
si e a todas em conjunto, pelo sistema financeiro.
O sistema
financeiro organizou-se de tal modo que, embora se apresentando como irrigador
da fertilidade das economias, se transformou num monstro que tudo destrói e de
tudo se apropria. Vide, por ex., a
ausência de financiamento à economia real; tal só acontece porque o sistema
financeiro encontra melhor remuneração através das aplicações financeiras do
que por via das afetações à economia real.
E tal é
inevitável? Certamente que não, mas para que não o fosse seria necessário que, a
nível dos Estados e das organizações mundiais, houvesse capacidade e vontade de
proceder à regulação, dos mercados de capitais e da sua circulação, como se
proclamou imediatamente a seguir ao desencadear da crise, em 2008. Não só não
existem como os Estados, que melhor o poderiam fazer, são quem beneficia,
também, do atual estado das coisas por via das aplicações financeiras que realizam.
A Europa fez
progressos reduzidos ao nível da integração das suas economias e a maioria dos
passos dados foram-no debaixo de orientações de matriz liberal, isto é, orientações
que procuram os beneficiar os mercados de capitais e não os outros mercados,
por ex., do mercado da mão-de-obra. Regresso aos mercados, sim, desde que sejam criadas condições para que seja possível regressar a todos os mercados. O problema é que como já aqui se demonstrou esse regresso, simultâneo, é impossível. Então, porque privilegiar o regresso, apenas, ao mercado de capitais?
Vem a
propósito recordar que o Banco Central Europeu (BCE) foi fundado debaixo deste
paradigma, embora sob o manto que pretendia proteger a Europa da inflação. Vale a
pena recordar declarações, feitas há dois dias, pelo seu Presidente Mário
Draghi.
Respondendo a
questões que lhe foram colocadas por uma deputada portuguesa no Parlamento
Europeu, a propósito do regresso aos mercados previstos para o dia 23 deste
mês, não se eximiu a dizer que “não é tempo para flexibilizar a meta do défice”.
Acrescentou que “A história recente mostra que até o
mais leve sinal de recuo nos progressos de consolidação orçamental faz os
mercados reagir brutalmente . . . a disciplina dos mercados está aí e vai
continuar e temos que ter isso em consideração no que fazemos”. Isto é, escravização
face aos mercados e eu acrescentaria, que não é face aos mercados, mas sim face
ao mercado de capitais. E não deveria, também, ter-se em conta a forma como reagem
os outros mercados, por ex., o mercado do emprego? Deixando, assim, funcionar o
mercado de capitais, o funcionamento do mercado do emprego fica altamente
perturbado. E eu pergunto, não se faz nada?
No
entanto, este Sr., em declarações feitas na mesma ocasião, admitiu a
possibilidade de lançar mais uma operação de liquidez de longo prazo de que beneficiaria
a banca da zona euro. Em relação a esta possibilidade, admite implicitamente,
que o "livre funcionamento" do mercado de capitais poderia deixar de ser um pouco
menos livre, para não dizer muito menos livre. Para isso aí está a mão protetora do BCE.
O
financiamento de que não podem beneficiar os Estados é bem-vindo quando
destinado a apoiar os bancos. Mais, sabe-se que por ocasião de operações de
financiamento realizadas anteriormente, a taxas de juro em torno dos 1%, a
liquidez obtida serviu para comprar dívida pública, incluindo a portuguesa,
que tinha como contrapartida taxas de juro 5 ou 6 pontos acima. Não esqueçamos
que as instituições que influenciam o comportamento das taxas de juro da dívida
(por ex., as agências de rating) são
controladas pelas instituições que vão beneficiar dessas mesmas taxas de juro, elevadas,
pagas pelos Estados.
Isto
é, os bancos jogam em casa e fazem pagar ao adversário os custos de manutenção, do estádio e
dos balneários! Assim também eu!
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