A comunicação social não parece ter dado grande relevo a uma medida de gestão tomada pelo Ministério da Saúde. Mas o médico Bruno Maia, em texto publicado em http://www.esquerda.net/opiniao/semana-zero-do-sns/23414, alertou para a gravidade dessa medida de tal modo que deu ao seu texto o título “A semana zero do SNS”. E não é para menos. Nem é demais insistir e dar eco à denúncia de um acto de gestão, mas que é muito mais do que isso.
Com efeito, “os serviços partilhados do ministério da Saúde publicaram esta semana um concurso público para a celebração com empresas de trabalho temporário (ETT), que visa a contratação de médicos para as instituições do SNS, em regime de prestação de serviços, pagos à hora…As instituições do SNS passam a contratar não médicos mas serviços, por hora, a ETT que disponham de quadros médicos. Todas as funções são alvo de contratação, não só urgências (como no passado), mas tudo: consultas, cirurgias, internamento, serviços pré-hospitalares, cuidados intensivos, TUDO!”.
No total (resultante de subtotais em “lotes”- distritos) são 2,5 milhões de horas por ano, a contratar, em trabalho temporário às ETT, equivalendo a 1700 médicos em horário completo. Como diz Bruno Maia, “Simples e claro, o ministério pretende não voltar a contratar mais nenhum médico para funções permanentes, apesar de existirem essas necessidades claramente apontadas (1700 médicos !!!), pretende sim contratar o tipo mais barato, não importa a qualidade, por uns mesitos e depois troca-o por outro qualquer!” (e através de uma ETT, acrescento eu).
E é mesmo o mais barato, para corresponder ao “critério de adjudicação” estipulado no artigo 5º do concurso, o qual diz textualmente, no seu número 1: “O critério de adjudicação é o do mais baixo preço unitário por hora”. Não se fala de critérios de qualidade, de experiência médica, não, custo hora é que interessa. As consequências em termos de qualidade de serviço de saúde são desastrosas, como mostra Bruno Maia no seu texto-alerta.
Quanto a mim, trata-se de uma medida degradante a vários níveis: é a degradação do acto médico, é a degradação de uma profissão, será a degradação de alguma confiança que ainda existe quando se vai ao hospital e, a prazo, “significa o fim do SNS…”, como conclui Bruno Maia.
É também mais um passo para a degradação do trabalho, tratado assim como simples custo o mais variável possível e o trabalhador como facilmente descartável, por mais qualificado que seja. Poderão dizer que trabalho precário já existe também ao nível dos médicos (para não falar dos enfermeiros). As condições de precariedade serão factor de aviltamento profissional. Para sobreviver, não devia valer tudo. Esperar-se-ia que os médicos, como profissão, resistissem a pressões nesse sentido, ao menos por solidariedade para com os mais jovens.
Mas a relação com o utente, que é o doente, não pode ser tratada como a relação de um engenheiro ou de um mecânico com o sistema ou o mecanismo, não se pode comprar como apenas hora de trabalho (ainda por cima ao mais baixo preço unitário), como se comprariam horas de manutenção de equipamentos ou horas de “call centres” (sem menosprezo por quem nestes trabalha). Isso é o que faz (mas mesmo assim, mal, em minha opinião) uma “central de compras”. Ora aí está! É que é “na qualidade de Central de Compras” que a “SPMS - Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, EPE” apresenta o concurso de que temos estado a falar.
Aparentemente é um acto de gestão de um serviço (perdão!, de uma entidade empresarial) do Ministério da Saúde. Ora, é mais do que isso: não só pelas condições de degradação do SNS de que será factor, como pela filosofia política que lhe está subjacente, pelo menos objectivamente.
Se “o culto da empresa” invade assim, e com tais práticas de gestão, a Administração Pública, e nomeadamente o SNS (e a criação da entidade empresarial SPMS em 2010 terá sofrido influência desse culto), o Serviço Público – e que haverá mais de serviço público do que o Serviço Nacional de Saúde? – tenderá a esbater e perder a sua dimensão de serviço aos cidadãos. À boleia da eficiência, práticas de gestão que tratam todos os recursos ao mesmo nível, que é o nível do custo o mais baixo possível, o nível do mais variável ou flexível possível, e, portanto, o mais longe possível do compromisso ou vínculo contratual, essas práticas de gestão têm, senão um sentido político, uma consequência política: destruir os serviços prestados pelo Estado aos cidadãos. Cuidado pois com a moda dos “Serviços Partilhados, EPE”!
E, portanto, rebaixar assim os serviços médicos, é não só degradante, como é revoltante!
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